“Nos matam através da caneta, a Lei vem para nos exterminar mesmo.” “Soja, cabeça de boi, tem mais valor que um índio.” “Os povos indígenas são como árvores adultas, não tem como arrancar e mudar de lugar, já deram raízes.”  

“O nosso tempo é outro”, avisou a mediadora do debate sobre “Políticas Culturais e Povos e Saberes Indígenas”, Naine Terena (MT), no SESC Arsenal. A primeira mesa da programação do seminário “Políticas Culturais – Diversidade e Direitos: Arte, Política, Saberes, Existências e Resistências”.

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Fotos cedidas pelo SESC Mato Grosso – Créditos: Latitude Filmes

E assim, adentramos neste tempo através de uma fresta daquilo que partilharam: memória, luta, presente, futuro. Suas palavras fortes geraram todo tipo de sentimento, desconforto, culpa, compaixão, respeito. Enxergar o outro na mesma medida e proporção de que este outro somos nós mesmos. Acho que as minhas palavras são desnecessárias (se puder indicar uma leitura é a reportagem da semana de Eliane Brum sobre Belo Monte e Belo Sun na Volta Grande do Xingu, aqui). Seguem os relatos de quem vive na pele todos os dias o massacre promovido e incentivado pelo Estado há 517 anos:

Jucinei Ukuyó Terena (MS) – Os Terena, também chamados Terenoe, são uma etnia indígena brasileira. Pertencem ao grupo maior dos Guaná-Xané. Vivem principalmente no estado de Mato Grosso do Sul. Últimos remanescentes da nação Guaná-Xané no Brasil, os Terena falam a língua Terena de tronco Aruak e possuem características culturais essencialmente chaquenhas (de povos provenientes da região do Chaco ou Exiva no idioma Terena).Natural da aldeia Buriti-Terra Indígena Buriti, município de Dois Irmãos do Buriti, distante a 120 Km da capital de Mato Grosso do Sul, de família bastante tradicional e exigente quando o assunto é a preservação da cultura, cresceu vendo os rituais religiosos do seu povo, onde foi batizado como Ukuyó (nome próprio), hoje trabalha como conselheiro tutelar eleito pela comunidade e atua diretamente na luta pela preservação de suas terras.

“A questão territorial é a nossa luta sempre, o Mato Grosso do Sul é o Estado mais anti-indígena do país, escutamos discurso de ódio contra nós de quem deveria fazer por nós. Os Guarani-Kaiowá estão em guerra lá, contra o agrotóxico que tira a vida dos nossos parentes e a mídia contribui, mostra de outro jeito. Não é nada um índio morrer baleado ou uma criança? A mídia noticia confronto, mas confronto é quando tem ataque das duas partes, e nós fomos atacados, tem um vídeo no Ministério Público Federal (MPF), mas o processo não anda.

Querem tirar os nossos direitos, até a terra, que é a nossa mãe, nossa cultura precisa disso, e o que a Constituição Federal prevê no artigo 231, mas rasgaram os nossos direitos.

Fechamos as BRs para sermos ouvidos e estamos prontos para a guerra, se precisar vamos morrer. Nos matam através da caneta, a Lei vem para nos exterminar mesmo. Não negociamos o nosso direito. Soja, cabeça de boi, tem mais valor que um índio. Nós estamos primeiro nessa terra. A gente não quer o Brasil inteiro, queremos as terras dos nossos ancestrais.

Na nossa aldeia temos 2 mil hectares para 5,5 mil índios, reivindicamos 17 mil hectares e a Procuradoria Geral da República (PGR) decidiu equivocadamente, usou o marco temporal que é de 05.10.1988, quando foi promulgada a Constituição.”

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Fotos cedidas pelo SESC Mato Grosso – Créditos: Latitude Filmes

Ao final, Jucinei explica que criaram o Conselho do Povo Terena (não possui validade jurídica como o próprio ressaltou em sua fala), porém congrega todas as aldeias. Através desta organização pretendem disputar cargos eletivos para garantir uma representatividade efetiva através da política.

Naine Terena – Terena vive da agricultura familiar, abastecem pequenas cidades, como falar de políticas públicas sem falar da terra? A terra é a base de todo o universo e organização dos povos indígenas. São 517 anos escondendo o microfone da gente, então quando pegamos temos que falar tudo e rápido.

Anarrory Yudja Sant Anna (MT) – Representante da etnia Yudja/Juruna, que se localizam no estado de Mato Grosso, mais precisamente no norte do Parque Indigena do Xingu. Povo indígena cuja língua é a única representante viva da família Juruna, do tronco Tupi. Autodenominam-se Yudjá; o nome Juruna significa, em Tupi-Guarani, “bocas pretas”, porque a tatuagem características desses índios era uma linha que descia da raiz dos cabelos e circundava a boca.

“Sem terra nós não somos nada, a terra é nossa casa, nossa morada, nossa vivência. Tanta tecnologia, tanto estudo e ainda não se compreende o que é os povos indígenas. Por que os nossos filhos tem que aprender a sua cultura e vocês não aprendem a nossa? Qual a diferença?

São 43 etnias em Mato Grosso com línguas diferentes. Não tem diálogo, parece que são dois mundos diferentes. E a discriminação parece loucura, na aldeia não posso ter conhecimento que vocês tem que eu vou deixar de ser índio? Se estamos na cidade, não nos reconhecem como índio e na aldeia não nos respeitam.

Deputado Carlos Marum (PMDB/MS) “Vocês não são índios por que tem conhecimento demais”

Nós sentimos uma agressão ao nosso pensamento. E o sistema nos obriga a aceitar como se estivesse tudo bom, tem barragens nos rios, estradas no meio das terras, fazendas ao redor das reservas. Não é o índio que quer esse subdesenvolvimento, queremos nossas terras, índio caça, pesca, só queremos isso, terra, água, natureza. É a casa do nosso alimento, os bichos não tem mais para onde ir, não tem onde viver. Falam: mas o índio vive de cesta básica, lógico, por que os bichos estão sumindo, tem fazenda do lado da reserva, só tem fazenda ao redor do Parque Xingu.

É preciso respeitar o que somos, a nossa cultura. O governo faz a estrada, não é o índio que quer.

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Fotos cedidas pelo SESC Mato Grosso – Créditos: Latitude Filmes

Falam “Brasil país de todos” mas quem estava aqui primeiro eram os povos indígenas. Em 1500 receberam os invasores de coração, não teve guerra. Não vamos para as manifestações com bombas, é sempre pacífico e com respeito. Em 1500 os invasores quiseram nos fazer escravos, mataram, exterminaram e até hoje fazem isso.

Os povos indígenas são como árvores adultas, não tem como arrancar e mudar de lugar, já deram raízes. Nosso tempo é diferente do de vocês, o modo de construir nossa identidade é diferente, as festas, os costumes, mas a mídia não coloca para a sociedade saber, não explica por que passamos fome, não explicam o alcoolismo, os suicídios. Cadê o Estado? Cadê o governo? Cadê a ajuda para aqueles povos? O que vamos deixar para os nossos filhos se cada vez mais impõe que não somos povos indígenas?

Lute por nós, pela nossa terra, que é de todos nós. Não sabemos aceitar a cultura do outro como ela é. A gente se comove muito com o que acontece lá fora e aqui tem os povos indígenas. Mais de 300 povos e cada um fala uma língua diferente, é mais fácil aprender a língua de fora do que a nossa?”

Naine Terena – “Antes éramos os donos dos rios, agora são as hidrelétricas. Com as rodovias vem a prostituição, drogas, estupros e tudo isso está oculto”.

Casé Angatu (T.I. Tupinambá de Olivença – BA) – Indígena morador no Território Indígena Tupinambá de Olivença (Ilhéus/Bahia). Doutor em História da Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo-FAUUSP – Linha de Pesquisa: História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista-UNESP. Atualmente é Professor Efetivo na Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC/Ilhéus-Bahia (Curso de Graduação e Especialização em História).

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Fotos cedidas pelo SESC Mato Grosso – Créditos: Latitude Filmes

“Nós vivemos da terra, temos uma relação diferenciada. Eu não gosto de trabalhar e quem falar que gosta de trabalhar é louco, se fosse bom você pagava e não recebia para fazer. Você vê um índio vai em alto mar com uma jangada sete paus para pescar e você pergunta para ele: trabalhando parente? Não, ele não está trabalhando, ele está curtindo.

Minha oca é de barro, se desfaz com o tempo, é outra relação com a natureza.

Os tupinambás são polígamos e isso é o amor livre. Ô branco olha como voce casa, vai no cartório assina um papel com uma testemunha, ai cabô o amor mas tem o papel. Vocês falam que somos estranhos mas vocês é que são. Querem casa para sempre, só um único amor.

Meu painho e minha mainha não sabiam ler e nem escrever, mas tinham mais sabedoria do que muito doutor. A sabedoria antecede, sucede, ultrapassa o conhecimento. A sabedoria é a base do conhecimento. Eu estudei em escola pública durante três anos com o pregador no nariz porque a professora queria tirar o sotaque – falamos muito hãm.

Vejo a cultura negra no Brasil, o samba, a capoeira (que também tem muito da cultura indígena), mas não vejo a cultura indígena. Tem muitos elementos da cultura indígena na língua portuguesa. Me perguntam Casé você fala tupi? Falo, inclusive quando falo português. Você come mandioca, jabá (carne do índio que fugia), você vai para São Paulo, Itaquera, Ibirapuera, Guarulhos.

A lei 11.645/2008 torna obrigatória a disciplina de estudos da história e cultura dos povos indígenas nas escolas brasileiras e não funciona. A lei é de 2008 não funciona e não vai funcionar. Em uma banca de doutorado, uma aluna pegou a grade curricular de universidades como PUC, USP, Unesp, Unicamp e não tem estudos sobre os povos indígenas, tem até dos povos do Egito, do Oriente, das formigas da África, mas dos povos indígenas não.

O Estado é o principal inimigo dos povos indígenas, são 517 anos de massacres contínuos. Sempre foi e sempre será. Não gosto do Estado, sou inimigo do Estado. Não sou povo brasileiro, sou índio, sou tupinambá, lutando para manter o que tem que já é ruim.

Até a forma de como acontece o reconhecimento étnico é autoritário, para citar Michel de Foucault, a microfísica do poder, nominar, classificar é exercer poder sobre alguém. Tem que ir a Funai para se declara índio, ai vem uma equipe de antropólogo para dizer se você é ou não índio. Autoritarismo. Até isso que é ruim a gente está perdendo. O novo presidente da Funai é um pastor do PSC, mesmo partido do Bolsonaro. Nada contra evangélicos, mas não queira me evangelizar.

A PEC 215 passa a decisão final de demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional e lá é bala, bíblia e boi. Eles não gostam de gente, eles não gostam de índio. Esse país não é fácil com os índios não, mata-se muito. Eu não garanto a minha vida. Índio é tratado na porrada, na bala.

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Fotos cedidas pelo SESC Mato Grosso – Créditos: Latitude Filmes

Nós somos a terra, não eramos donos, não somos donos, nós somos a terra, essa cor, a nossa cor é a cor da terra, somos Iracema por que nascemos do mel da terra. Nós queremos a terra não como propriedade privada, como mercância, mas sim para sobreviver, onde tem índio tem natureza preservada. É um direito espiritual à terra.

Tem movimentos como o mapuchi que rompem com Estado, não temos mais a ilusão, as demarcações foram diminuindo nos governos Lula e Dilma, antes tinha a Kátia Abreu no Ministério do Meio Ambiente, agora é o Maggi. Eu fico como? Fomos moeda de troca com a bancada ruralista e essa moeda de troca custou vida indígena. Não queremos Estado, faço parte de um coletivo que não quer o Estado, não queremos participar do jogo político.

E se o índio não concorda, não aceita, morre, vai lá e mata. Não vão nos prender pela nossa luta, eles vão criminalizar, presos por tráfico, por porte de arma, por formação de quadrilha, desacato à autoridade. O índio não vai ser preso por fazer a luta. E está na hora de rever o código penal, por que que maconha é crime? A maioria dos que estão presos, os pobres, é por tráfico.

E o índio para ser aceito tem que falar a língua, tem que rezar, e isso é etnocídio. Por isso quando falamos da terra é espiritual, temos uma espiritualidade ligada à terra. Sem nós não existe natureza. Queremos a terra para ter água e alimento.

Fora Temer, fora, fora golpe, fora, mas tem um golpe que vem sendo dado há 517 anos e continua a ser dado e reelaborado.”

3 Comentários

  1. CONVERSAR DE ÍNDIO !
    Por Casé Angatu

    Curva quem tem é rio
    Prosa de Índio é reta
    Clara e densa
    Numa outra temporalidade
    .

    Falamos de Tempos
    Atemporais
    Ancestrais
    Imemoriais
    Naturais
    .

    O silêncio nos fala
    Só com o ouvido da anga (alma)
    Se pode escutar
    .

    Escutar … que somos a terra
    Das nossas bocas cantam as Encantadas
    Ecoam os Encantados
    .

    Sem vinganças
    Falam as lembranças
    Da Terra,
    Águas,
    Matas,
    Bichos,
    Ancestrais

    Oráculo Naine Terena,
    Anarrory Yudja Sant Anna,
    Ukuyó Terena ,
    Casé Angatu Xukuru Tupinambá
    Naquele dia por nossos lábios falaram nossas angas Ancestrais Imortais … fomos uma só voz…
    .

    “Todo Índio Tem Ciência
    Todo Índio Tem Ciência

    Oh Tupã por que será?
    Oh Tupã por que será?

    Tem a Ciência Divina
    Tem a Ciência Divina

    No Tronco da Jurema.
    No Tronco da Jurema.”
    .

    AIÊNTÊN!!!!
    .

    Kuekatu aos organizadores do Seminário de Políticas Culturais, SESC Arsenal, 08 a 12/02/2017 – Cuiabá – Mato Grosso, especialmente Jan Moura, por não podarem nossas falas que são árvores com raízes profundas…
    OBS: para saber um pouco do que falamos leia, por favor, o anexo que segue…

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