Oferenda não é essa perna de sofá. Essa marca de pneu. Esse óleo, esse breu. Peixes entulhados, assassinados. Minha Rainha.

Não são oferenda essas latas e caixas. Esses restos de navio. Baleias encalhadas. Pinguins tupiniquins, mortos e afins. Minha Rainha.

Não fui eu quem lançou ao mar essas garrafas de Coca. Essas flores de bosta. Não mijei na tua praia. Juro que não fui eu. Minha Rainha.

Oferenda não são os crioulos da Guiné. Os negros de Cuba. Na luta, cruzando a nado. Caçados e fisgados. Náufragos. Minha Rainha.

Não são para o teu altar essas lanchas e iates. Esses transatlânticos. Submarinos de guerra. Ilhas de Ozônio. Minha Rainha.

Oferenda não é essa maré de merda. Esse tempo doente. Deriva e degelo. Neste dia dois de fevereiro. Peço perdão. Minha Rainha.

Se a minha esperança é um grão de sal. Espuma de sabão. Nenhuma terra à vista. Neste oceano de medo. Nada. Minha Rainha.

Para Iemanjá – Marcelino Freire

Cheguei com 20 minutos de antecedência, empunhando dois livros e uma caixa de cartões-postais com desenhos eróticos. A luz refletia o branco dos móveis e das paredes em contraste com os livros coloridos nas estantes. Sentado em uma cadeira, encurvado com os óculos bem próximos à página do livro, seus cabelos cheios escondiam-lhe o rosto. Parei e esperei que reparasse na minha presença. Lentamente levantou os olhos com os óculos já na ponta do nariz e os cabelos embaraçados deram espaço ao rosto que se revelou curioso.

Marcelino freire
Foto: Jorge Filholini / Projeto Quebras

Um escritor que ganhou primeiro lugar do prêmio Jabuti com o livro Contos Negreiros e finalista com o romance Nossos Ossos. Trocamos um momento de silêncio até que após me observar atentamente, apresentou-se com um sotaque nordestino árido e carregado. Confesso que me sentia como uma tiete de banda de rock’n’roll. Estava ansiosa. Com o anúncio do workshop no SESC Arsenal, aprofundei a pesquisa sobre seu trabalho e obra. Devorei seus poemas a caminho do curso, e os li em voz alta para minha mãe, que passaria aqueles três dias junto comigo.

Aqui é preciso dizer que minha relação com a literatura vem do berço. A memória que não guardo, mas que me é contada, remonta aos poemas lidos enquanto ainda estava na barriga. Esta sintonia corre nas veias. A primeira lembrança que tenho com a escrita me leva de volta aos meus seis anos de idade, quando dedilhava palavras aleatórias na máquina de escrever da minha mãe. Lua, estrela, céu. E assim, reunia sentidos diversos naquilo que seria meu primeiro poema.

Entreguei os presentes que carregava comigo. Os livros Deus de Caim de Ricardo Guilherme Dicke e Eunoia de Eduardo Ferreira. A caixa com os postais eróticos de André Balbino fizeram brilhar os olhos vorazes daquele escritor, que possuía corpo e sexo em seus poemas.

ele chega e me aperta
peito dentro do peito
ao meu pobre coração
fala mais de um segredo
engole a minha saliva
me sequestra um beijo

aí depois vem com desculpas
me diz no outro dia
“é que eu estava bêbado”

ele pula em meu pescoço
me lambe cheiro por cheiro
molha de nicotina
todos os meus pelos
na cama me ama e grita
que é homem e não tem medo

aí depois vem com desculpas
me diz no outro dia
“é que eu estava bêbado”

ele chega em meu ouvido
contorcido de desejo
come o meu rabo o bandido
me humilha de joelhos
clama assim que eu chupe
cada um de seus dedos

aí depois vem com desculpas
me diz no outro dia
“é que eu estava bêbado”

seu merda filho da puta
desculpas deste tipo de novo
já disse que não aceito
porque mais bêbado do que eu
neste mundo não existe
nenhum outro sujeito

Poeminha bêbado – Marcelino Freire

Enquanto analisava cuidadosamente os presentes, os demais inscritos chegaram e tomaram seus lugares. A sala ficou cheia. De um salto, o escritor levantou, pediu para fecharem a porta e apresentou-se: – Marcelino Freire, escritor brasileiro, nascido na cidade de Sertânia em Pernambuco.

Marcelino contou que já conhecia Cuiabá. Agradeceu os presentes recebidos e resolveu abrir a aula com a leitura do primeiro parágrafo de Deus de Caim, reverenciando a grandeza de Guilherme Dicke e ressaltando o esquecimento que pairou sobre sua vida.

“Na rede Lázaro. Zumbidos. O irmão morto na rede. O mundo rodeando sua roda indiferente. As moscas voavam lentas e pousavam na cara dele. Não se importava, Lázaro morto, narinas paradas. Todos os telégrafos diziam: Lázaro morreu e vai ser enterrado. Para sempre. Antigamente, diziam, havia a ressurreição. Agora não. Agora a sombra que abandona este reino de sombras, caminha para sempre só, num outro reino de sombras ainda mais solitárias. Só, como um rei perdido, só, sem reinado, na essência redonda da morte. Tão fácil, morrer”.

Marcelino 1
Foto: Jorge Filholini / Projeto Quebras

Depois da primeira interação, fomos desafiados a sintetizar o que acreditávamos ser o amor em um pequeno papel. Acredito que mereci as críticas de Marcelino. Posso encontrar desculpas e dizer que estava enferrujada, mas a verdade é que acabei tomando o caminho mais fácil. Todos os apontamentos à minha pílula sintética sobre o amor desafiaram-me a escrever algo que o surpreendesse. O dever de casa era escrever sobre Cuiabá e utilizar uma palavra que Marcelino daria a cada um. A minha palavra era chuva.

Fiz uma crônica para minha cidade quente, com base em uma pesquisa para umas matérias sobre São Benedito, que nunca cheguei a escrever. Mas, foi assim que soube das missas clandestinas realizadas ao santo pretinho, como era conhecido. O lugar em que rezavam tornou-se um anexo à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que agora divide sua morada com São Benedito.

Marcelino me disse que meu texto choveu. Levarei este dia comigo. E muitas outras pérolas foram encontradas naquela sala branca. Os ouvintes do escritor pernambucano souberam aproveitar tudo o que ele gentilmente derramou sobre literatura. E as imagens se fizeram fortes, reais, e trouxeram à luz uma Cuiabá diferente para cada um, mas que sabíamos pertencer a todos.

Foto: Jorge Filholini / Projeto Quebras
Foto: Jorge Filholini / Projeto Quebras

E é justamente este ponto que Marcelino pretende firmar por onde passa com seu projeto “Quebras” ou Que Brasil É Esse? É dar voz a nossa cultura diversificada pelos quilômetros de extensão territorial e amplificar o que se ouve fora do centro Rio-São Paulo. Seu ensinamento maior foi sobre enxergar aquilo que é nosso, nos pertence. São as ruas que passamos, as pessoas que vemos e as histórias que não contamos. São as narrativas do cotidiano, que precisamos dar ênfase. Fazer com que a vida seja como nos revelam nossos dias.

Como um andarilho das letras, Marcelino percorreu 15 capitais brasileiras, e reuniu imagens de vídeo e textos sobre as cidades, as pessoas, as experiências trocadas. Um desbravador das letras em uma viagem literária pelo Brasil. E Cuiabá, cativou um espaço quente em seu coração.

Parece que ainda consigo escutar sua voz a ecoar na memória, recitando poemas que mexeram com as estruturas dos corações presentes. Se fechar os olhos posso vê-lo com os óculos na ponta do nariz, as mãos levantadas ao céu, os cabelos desgrenhados a roubar-lhe as feições, e sua voz eloquente a ressoar pelo salão branco: Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música!

Súplica – Noémia de Sousa

Tirem-nos tudo,

mas deixem-nos a música!

Tirem-nos a terra em que nascemos,

onde crescemos

e onde descobrimos pela primeira vez

que o mundo é assim:

um tabuleiro de xadrez…

Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,

a lua lírica do xingombela

nas noites mulatas

da selva moçambicana

(essa lua que nos semeou no coração

a poesia que encontramos na vida)

tirem-nos a palhota – a humilde cubata

onde vivemos e amamos,

tirem-nos a machamba que nos dá o pão,

tirem-nos o calor do lume

(que nos é quase tudo)

– mas não nos tirem a música!

Podem desterrar-nos,

levar-nos

para longe terras,

vender-nos como mercadoria, acorrentar-nos

à terra, do sol à lua e da lua ao sol,

mas seremos sempre livres

se nos deixarem a música!

Que onde estiver nossa canção

mesmo escravos, senhores seremos;

e mesmo mortos, viveremos,

e no nosso lamento escravo

estará a terra onde nascemos,

a luz do nosso sol,

a lua dos xingombelas,

o calor do lume

a palhota que vivemos,

a machamba que nos dá o pão!

E tudo será novamente nosso,

ainda que cadeias nos pés

e azorrague no dorso…

E o nosso queixume

será uma libertação

derramada em nosso canto!

– Por isso pedimos,

de joelhos pedimos:

Tirem-nos tudo…

mas não nos tirem a vida,

não nos levem a música!

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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