A primeira cena do documentário “O Complexo” não é de guerra, é de extermínio. Soldados armados como se fossem enfrentar um inimigo entram nas terras indígenas atirando enquanto a câmera trêmula, provavelmente de um celular, registra os abusos do exército (que supostamente deveria proteger o povo brasileiro). Na operação Eldorado da Polícia Federal em 2011, um cacique foi morto. As cenas da violência, da morte, da perda, do luto passam em frente aos nossos olhos brancos. As lágrimas rolam dos rostos dos brancos, dos não indígenas, dos indígenas. A emoção flui de um para o outro por que todos somos humanos e é impossível não sentir empatia quando confrontados com a realidade tão dura a que são submetidos os povos indígenas e povos tradicionais brasileiros.

Sobre o extermínio sistemático dos povos indígenas pela caneta e pela lei do Estado, escrevi aqui. O tema volta ao debate durante a Semana dos Povos Indígenas na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). O documentário foi exibido nesta terça-feira (18) na mesa sobre “Os Direitos Indígenas no contexto das hidrelétricas nas bacias dos rios Teles Pires e Juruena” no Museu Rondon.

O filme traz muitas denúncias. No rio Teles Pires quatro usinas hidrelétricas (São Manoel, Teles Pires, Sinop e Colíder) com um investimento total de R$3,3 bilhões extinguem o modo de vida que até então conheciam as etnias indígenas localizadas na região, além das populações tradicionais como os ribeirinhos. O rio já não existe. É uma lagoa com 50% da vegetação debaixo da água. Como disseram: é um rio afogado. E os peixes morrem se não pela perda de oxigênio com a ‘fermentação’ da floresta soterrada pela água, pelas turbinas das usinas.

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Aquele existir não existe mais. Não é possível coexistir em uma relação desleal com a natureza, sob o pretexto desenvolvimentista colocando em risco as populações que deveríamos proteger, como previsto na Constituição Federal, artigo 231. A relação destas populações com a terra é a da própria existência. É na floresta e no rio que aplicam seus conhecimentos milenares para reconhecer os sinais da natureza, esta leitura que permite a pesca, a colheita, a preservação, os saberes medicinais, a sua resistência.

A preocupação é que agora é o rio Teles Pires, mas logo será também o Juruena, o Arinos, e o impacto destas hidrelétricas e as respectivas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) não é comensurado em conjunto. “A barragem é luta política. Vamos ficar inertes enquanto esta quadrilha assalta nossos direitos?”, questionou o professor de engenharia elétrica da UFMT Dorival Gonçalves Junior. Logo mais não existirá bacia de Tapajós, Amazônia, Cerrado, rios, natureza, ou vida.

Rio Teles Pires - 7 Quedas
Rio Teles Pires – 7 Quedas

Dizem não haver impacto, mas como, se o rio é dividido, segmentado, cortado, desviado do seu curso natural, transformado em uma água que não corre mais? E assim as populações perdem sua subsistência para dar lugar a empreendimentos desenvolvimentistas que irão atender aos interesses das indústrias. E mesmo que o empreendimento não seja dentro de terras indígenas afeta e impacta todo o meio ambiente.

Cerca de 80% do investimento é realizado pelo próprio Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), com dinheiro do contribuinte. O licenciamento não cumpre as condicionantes, como a exemplo de outro caos ambiental e social como Belo Monte na Volta Grande do Xingu, que discorre muito bem aqui a jornalista Eliane Brum, uma das vozes conscientes sobre os problemas ambientais, sociais e políticos que vive o país. Não cumprir condicionantes é regra, e não exceção. A questão é tão séria que criaram o Movimento Atingidos por Barragens (MAB) com participação de 17 estados.

O documentário também denuncia que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do Ministério de Minas e Energia é responsável por realizar os estudos de viabilidade técnica e econômica, mas não possui quadros para tal tarefa, por isso contrata consultorias, geralmente ligadas às empresas que depois participam dos leilões.

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“A usina de Teles Pires é um monumento à insanidade”.

A tática é fragmentar as comunidades indígenas para enfraquecê-las e assim fazê-las aceitar o que quer que ofereçam, obrigando-as a negociar com seus algozes.

Após o filme, Darlisson Peixoto Apiaká, liderança indígena da aldeia Mairowi, no rio Teles Pires falou sobre sua vivência. “Os peixes subiam o Teles Pires para reproduzir na 7 Quedas, agora 50% da vegetação está submersa e isso tira o oxigênio da água. O empreendimento vem e oferece gasolina, motor, carro, isso acaba e ficamos sem rio, sem peixe, sem cachoeira. É uma incógnita, os empreendimentos duram anos e não tem como saber a extensão do impacto, é o extermínio de um povo. Tudo que vem do empreendimento não é bom, é tudo negativo”.

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Professor Dorival destacou que a finalidade da água é a produção de eletricidade, e isso está previsto na Lei 9.074 e alertou também sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 que passa a demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional.

“Este é um processo combinado entre estado e setor empresarial, a indústria é muito ampla por trás deste interesse em eletricidade, tem a indústria da construção civil, de máquinas e equipamentos, internacional. Uma organização empresarial, política, financeira com vínculos regionais e internacionais. Hoje vivemos uma ditadura econômica e política. A América do Sul possui uma riqueza hidráulica, de gás natural, petróleo, e é fundamental ter controle disso diante da crise internacional”.

João Andrade coordenador do Núcleo de Redes Socioambientais do Instituto Centro de Vida (ICV) chamou a atenção para a necessidade de união das pautas. “O que estamos vivendo agora é exemplo do que vai vir, a Amazônia é um território a ser ocupado por forças políticas e econômicas. Os avanços estão sendo quebrados, existe uma desestruturação de órgãos como Funai, ICMBio, Ibama, Iphan. É um alerta para começar a se mexer, precisamos ser atores ativos. Essa sequência de barramentos está afogando o rio, ele perde velocidade”.

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Nexo Jornal mapeou o Brasil dividindo as terras públicas e privadas, sendo 47% delas da União, e deste total as áreas indígenas e de conservação ambiental representam 13% e 12%, respectivamente. Das 1.113 terras indígenas reconhecidas, em processo de reconhecimento ou reivindicadas pelas comunidades, até dezembro de 2016, apenas 398, ou 35,75%, tinham seus processos administrativos finalizados, ou seja, haviam sido registradas pela União.

Vivem hoje no Brasil 305 povos indígenas, com uma população de mais de 900 mil pessoas, que falam 274 línguas diferentes, distribuídos em todos os estados, conforme dados do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE) de 2010.

Palmas (TO) - Indígenas de diversas etnias interrompem as competições dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em protesto contra a PEC 215 (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Palmas (TO) – Indígenas de diversas etnias interrompem as competições dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em protesto contra a PEC 215 (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Hoje é dia do índio. Mas o que tem para se comemorar? O extermínio? O genocídio? A morte de uma cultura? De um povo? De meios de vida? De uma sabedoria baseada na vivência? É preciso despertar para os movimentos políticos e econômicos que apontam para o caminho do dito desenvolvimento e a que custo este caminho é trilhado. É o custo de vidas. Quanto vale uma vida? Quanto vale a memória e a cultura de um povo?

“De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará”. 

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