Por Sissy Cambuim*
Imagine-se num local público, cheio de gente. De repente, um incômodo, um alerta. Aquela leve pressão no abdômen é o sinal de que você precisa de um momento de privacidade. Então você levanta os olhos, procura por um banheiro. Lá dentro, busca uma das cabines onde finalmente se entrega à sua intimidade.
Será?
Para muitos é simples assim. Para outros e muitos é só o começo de mais uma preocupação.
São nos espelhos desses locais reservados à privacidade que se refletem algumas barreiras sociais que mais te expõem.
Imagine um dia comum de trabalho. Entre uma tarefa e outra você eventualmente levanta para ir ao banheiro com a maior tranqüilidade. Mas e se você não estivesse no seu corpo, seria fácil assim?
Imagine você, mulher, sendo privada de utilizar o banheiro feminino. Imagine você sendo a única mulher da empresa a usar o banheiro masculino com todos aqueles mictórios. Imagine você, homem, sendo obrigado a usar exclusivamente o banheiro feminino do estádio.
Agora imagine passar por essa situação todos os dias.
Não são os rótulos na porta do banheiro. São os olhares através do espelho. São as caixinhas que a sociedade te coloca contra a tua vontade. São formas que não se encaixam. É colocar o quadrado dentro do círculo. Todos os dias, pouco a pouco, até que você perca suas arestas.
E um dia alguém percebe que não cabe, que não tem que incomodar. E aí a forma fica ainda pior. Tentam colocar o círculo dentro de um triângulo pequeno, rígido e pontudo.
Às vezes você só precisa ir ao banheiro. Aquele espaço reservado à privacidade. Aquele lugar onde sua intimidade deve ser resguardada. Às vezes você só precisa disso. Mas às vezes você é transgênero e tem 12 anos e está numa escola cheia em que não te querem no banheiro feminino e nem no banheiro masculino. Às vezes você é uma mulher de 35 anos e é chamada de “estuprador” por reivindicar seu direito de ir ao banheiro feminino. Às vezes você é um homem de 25 anos que não consegue usar o banheiro masculino que só tem mictórios. E outras vezes você só está sentado na mesa do restaurante próxima ao banheiro julgando quem entra em uma porta ou em outra.
Somando todos esses “às vezes” temos uma vida inteira de cotidiano transformado em sofrimento.
Mas você pode estar achando que isso está muito longe da sua realidade. Que isso não é bem assim e que as exceções devem se adaptar ao mundo como “ele é”. Era o que pensava Maria.
Um dia Maria conheceu João, eles se casaram e tiveram uma filha. Quando a menina completou dois anos, Maria precisou viajar por uns dias para cuidar de sua mãe. João, um pai presente e carinhoso, assumiu os cuidados da filha por alguns dias. Aí ele saiu com a pequena para almoçar. Quando a menina pediu pra ir ao banheiro é que veio a pergunta. O que fazer? João deveria levar sua filha ao banheiro masculino com ele ou entrar no banheiro feminino com a criança?
Situação parecida aconteceu com José, que tinha guarda compartilhada do filho de cinco meses. Certo dia ele precisou ir ao shopping comprar umas roupinhas para o bebê. Lá foi ele com o filho no carrinho. Aí chegou a hora de trocar a fralda. Mas no banheiro masculino não tinha trocador.
Ninguém sabia que era obrigação da mulher cuidar da criança. Todos tinham carinho e responsabilidade para com os pequenos. Mas na hora de ir ao banheiro. Na hora daquele momento de privacidade, a barreira vem fazer companhia.
A Ana se sentia independente na maior parte das vezes. Não fossem as brincadeiras com seu nome, nem lembrava que era anã. Ao longo da vida aprendeu a superar muitas dificuldades decorrentes de sua baixa estatura. Mas quando saia à noite, passava no banheiro e, se alcançasse todos os espelhos, veria refletida a falta de privacidade a que estava exposta naquele momento. No espaço reservado, tentava vencer as dificuldades para usar o vaso sanitário. Por vezes, precisava pedir ajuda para alcançar o papel para enxugar as mãos, isso quando conseguia chegar às torneiras.
Era a mesma dificuldade que Pedro tinha do alto de seus 4 anos de idade, quando sua mãe o pegava no colo para ele lavar as mãos.
Aquela pia rebaixada serviria para Ana, para Pedro, para Francisco que usava uma cadeira de rodas. Mas não precisava – pensavam, é só uma minoria, eles podem dar um jeito.
E foi “dando esse jeito” que o mundo virou um lugar em que a responsabilidade de cuidar das crianças nunca deixou de ser obrigação das mulheres para se tornar opção e, mais ainda, nem se transformou numa opção para os homens. Foi dando “esse jeito” que dezenas, depois centenas, depois milhares de homens e mulheres se sentiram violentados por dias, semanas, meses, anos, por uma vida inteira. Foi assim que Letícia foi perdendo a vontade de sair de casa. Foi assim que Fernando foi se retraindo e encontrando cada vez mais dificuldades para se colocar no mercado de trabalho.
Foi simples assim, como quem vai ao banheiro, buscando um pouco de privacidade, que uns e outros se viram expostos no reflexo do espelho. Foi lá no lugar que você tantas vezes escolheu para se esconder, para chorar, que tantos evitavam a hora de ter que entrar. Foi ali, no local da vida privada, que a privacidade de escolher ser quem é e viver como se é foi violada.
E você, o que enxerga no espelho do banheiro?
*Sissy Cambuim é jornalista