roía as unhas enquanto assistia a novela. roía as unhas quando pensava nele. roía as unhas por ansiedade ou medo. e quando se alegrava, roía as unhas como vitória. enquanto esperava, roía as unhas. essa mania insistente de roer as unhas, o tempo todo, maquinalmente, roendo as unhas. precisava primeiro acabar com todas as beiradas. depois, com delicadeza, ia puxando a pele machucada.

ele já não podia mais aguentar aquilo. se saia do banho, via-a deitada na cama, a roer as unhas. até quando estava na privada, estava roendo as unhas. com um ar rabugento perguntou: será que você não consegue passar um dia sem roer essas benditas unhas?

– e você vive algum dia sem os seus benditos cigarros?

são os vícios – pensou ele. eu tenho os meus, você tem os seus, mas precisa ser o tempo todo?

– não sei se você se lembra, mas foi por eu roer as unhas que te conheci.

é. era verdade. ele ainda se lembrava daquele dia. já fazia uns três ou quatro anos – nunca fora bom medindo o tempo. ele trabalhava como caixa de farmácia. percebeu a moça morena de grandes olhos castanhos chegar ao balcão com a receita em mãos. um anti depressivo e um esmalte para não roer unhas? não conseguiu segurar a risada e ela devolveu com um olhar de reprovação. – me desculpe senhora.

depois de algumas semanas de relacionamento ele iria entender que era assim mesmo a sua personalidade, intempestiva. mas naquele momento específico achou estranha a sua reação. aquele olhar fulminante havia aceso algo dentro dele, que ele não sabia dizer o quê. – ninguém é perfeito. ela suspirou. ele sorriu meio sem graça e instintivamente segurou sua mão. ela o olhou novamente. só que dessa vez, não era um olhar reprovador. nunca vira um desses antes. era um olhar esperançoso. reparou nas unhas roídas até o toco.

desde aquele dia em diante, ele havia se acostumado com sua mão magra, com os dedos cabeçudos, sem unhas. era com certeza, a mão mais apaixonante que já havia visto. nunca fora de reclamar sobre a compulsão da companheira. ela nao reclamava dele. nao reclamava dos cigarros acesos na madrugada. quando a insônia vinha acompanhada de um maço. nao, ela nunca reclamou. devia ser isso o amor. aceitar o outro. plenamente. sem discussões. sem disputas. sem querer ser melhor ou pior. ser só você mesmo. é tudo o que podiam oferecer um ao outro. ele baixou os olhos meio envergonhado e viu nela o mesmo olhar de reprovação de quando se olharam pela primeira vez. só que de uma forma ou de outra, parecia estar olhando em outros olhos. não era mais a mesma. engordara alguns quilos. exatamente quantos? não sabia. achava-a mais bonita assim. não gostava de mulheres muito magras. mas gostava de mãos magras. e ele nunca havia visto mão mais apaixonante. ele sabia disso.

ela por sua vez se encantou pelo jeito tímido. se encantou pelo instintivo. se encantou pelo espontâneo. sempre sonhou em viver um amor diferente dos que conheceu. sempre sonhou em ter a historia de amor mais mirabolante de todas. sonhou que o amor deveria ser supremo e cheio de aventuras. conquistar. era disso que se tratava o amor. mesmo que não reclamasse dos cigarros, esperava posturas mais confiantes do companheiro. esperava que ele crescesse e conquistasse coisas com ela. mas acima de tudo, queria que ele a conquistasse, por completo. ele havia feito isso, aquele dia, quatro anos antes – ela sabia todas as datas. mas isso fora há quatro anos. mais necessariamente, a sessenta meses e onze dias. não marcava as horas, sua obsessão era apenas as unhas. só que na sua cabeça o amor funcionava com a conquista. e esta precisava ser diária. todos os dias esperava atitudes. esperava carinhos. confissões. esperava vicissitude. queria que ele a conquistasse para ter a certeza de que ele era seu e de mais ninguém. não bastava estar ali, precisava ser do jeito dela.

são pequenas coisas que desencaminham um bom relacionamento. uma palavra jogada fora. uma data esquecida. uma flor perdida. pequenos detalhes, de minutos ou de linhas. são como os discos, que mudam as trilhas sonoras. não existe amor perfeito. porque não existe ninguem perfeito. somos completos de erros. cobertos de inseguranças. de medos. é preciso despir por completo para enxergar o quadro todo. é preciso despir a alma para se entregar sem sentir. se entregar e não doer. se entregar sem machucar. a si ou ao outro.

agora tudo o que via nela, eram unhas roídas. após três ou quatro anos, porque ficara tão incomodado justo hoje? –  é só uma unha.

para ela era só a unha. para ele eram todas as unhas. todas as vezes que ela roeu as unhas. todos os dias que a encontrou com os dedos na boca. todos os dias que indagou, porque raios roe as unhas mesmo quando não as tem? ela explicou várias vezes o que o psiquiatra lhe disse. era dependência-físico-obssessiva-de-ansiedade. que porra é essa? ele gritava. e ela continuava roendo as unhas. fazendo como se não fosse com ela. era o que mais irritava. ele fazia tudo do jeito dela e ela não fazia nada do jeito dele. os cigarros, as unhas, eram tudo pretexto. ela o acusava de possuir os vícios, devia ser doente também.

– todos somos. meu psiquiatra me disse, é tudo culpa da mãe.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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