Por Luiz Renato de Souza Pinto
Na noite de vinte e nove de março, estive no SESC Arsenal para assistir ao “Seminário de Poéticas Contemporâneas”, capitaneado por um grupo de orientandas do Programa de Pós-Graduação em Cultura Contemporânea da UFMT. Reunidos em um mesmo palco/mesa seis pesquisadores/artistas colocavam-se à disposição da plateia seleta para a socialização de suas pesquisas na área das artes cênicas. Theresa Helena, Elka Vitorino, Carlos Ferreira, Dani Leite, Juliana Capilé e Tatiana Horevith. Debaixo de um mesmo guarda-chuva epistemológico, capitaneado pela professora doutora Maria Thereza de Oliveira Azevedo, um a um puderam desfilar seus anseios acadêmicos brindando-nos com imagens e histórias decalcadas em suas vivências artísticas e acadêmicas.
Theresa Helena começou a viagem falando da existência dos encontros em nossas vidas e de como eles, enquanto potências de experiência atuam na criação performativa. Ao desfiar seu novelo me provocava em pensamento acerca de Walter Benjamin e em sua distinção acerca de vivência e experiência. Mas de lá, de Thereza, vinha Nicholas Borriaud afirmando “a obra sentida como uma duração a ser experimentada”. Subia-me ao cérebro a leitura de Adélia Prado valorizando sua rotina, revelando-nos a poética do cotidiano: sublimei! Como não lembrar de Vinicius de Moraes “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. E de Deleuze com aquela coisa de que a memória é seletiva. Algumas coisas ficam; outras simplesmente partem. Com a sua citação de Féral invoco a estética da recepção; o expectador pode transformar essa experiência em cotidiano, é a questão da autoria, invocando Bakhtin.
Elka Vitorino, que não conhecia pessoalmente, trouxe-nos a dança enquanto elemento de pesquisa e alcancei em suas palavras uma busca pela questão identitária, Os corpos existem em algum lugar e seus estímulos de percepção corporal me trouxeram à mente essa amplitude na criação/reprodução do gesto. Gostei da terminologia invertida; ao invés de contaminação, afecção. Parece mais autoral, trouxe melhor a questão do pertencimento. Fico imaginando essa busca da alteridade no reconhecimento dos corpos. Melhor aguardar a funkeira em busca identitária antes de correr maiores riscos de concluir apressadamente.
Carlinhos Ferreira, marinheiro de outras águas, vem do alto do barranco em busca de arrimo. Sua pesquisa e dramaturgia na cena ribeirinha toma corpo estético além do palco com sua escrita certeira. Chego a ouvir o timbre do barro tocado em sua magia corpórea. Imagino a riqueza da pesquisa desde o Gênesis, de Jó, até o espaço da plateia, o grau de expectação doa audiência como vi na estreia da segunda temporada de seu espetáculo. Enquanto não vem o arrimo das águas, quedo-me a pensar na resistência do barro, na resiliência do homem do barranco, aquele que molda e é moldado por toda essa experiência. Mais uma vez a questão da identidade em meio às transformações do espaço. Cavaleiro deste apocalipse, Ferreira materializa no palco e na cultura acadêmica o respeito à cultura popular, além do próprio merecimento. Do barranco ao arrimo: arribação de uma cultura sólida que se pereniza, enquanto ficamos avessos ao que seria o jogo de caxangá.
Dani Leite pega da palavra para falar de algo que me deixou sem palavras. Seu ORAMORTEM, repleto de erudição no próprio título (corpo ex-posto, acontecimento e artes híbridas no teatro contemporâneo) traz do campo da filosofia e da própria unidade familiar sua temática aplicada à pesquisa de corpo/memória para nos dizer a que veio. Também tenho histórias de uma avó querida a povoar o imaginário. Em meus dezoito anos de docência já contei inúmeras vezes aos alunos (fundamental/médio/superior/pós-graduação) o “causo” imortalizado pela narrativa da vozinha: O homem sem tripa. Sei bem do que fala Dani Leite. Mesmo sem a erudição de um filósofo acerca de Spinoza busco alcançar seu imaginário enquanto desfila conceitos aplicados de maneira exemplar.
Ao trazer à baila a figura de Antonin Artaud, sem fazer uso de crueldade alguma, a pesquisadora nos ressignifica a questão do luto, do delírio, e me vem à cabeça a figura emblemática de Nise da Silveira. É muito bom ouvir as pessoas, conhecer as pesquisas, pois elas revelam não apenas o que os pesquisadores veem, pensam, mas muito do que há em nós, sobremaneira. Fazer a teoria dialogar com, ao invés de interpretar, dá-nos a dimensão do que vem a ser a experiência. Essa arqueologia do futuro a que se refere nos traz a certeza de que Dani, mesmo falando com muita propriedade, não nos traduziu em palavras o que é seu espetáculo.
Juliana Capilé toma a palavra não para falar da sua cidade, mas sim da Cidade dos Outros. Vem com as contaminações de um processo poético e suas maquinações. Seria o não eu? Ao longo de sua exposição fico a imaginar os dois mendigos – condição inicial do espetáculo – e sua relação acorrentada que rompe asa algemas com o mito grego para se corporificar na roda da fortuna do capitalismo selvagem do século XX. Esse entre-lugar, ou seria não lugar, ou ainda um entre não lugar (não ficou claro para mim), fruto de suas maquinações me lembra aquele conto do J. J. Veiga A Máquina Extraviada, outra metáfora capitalista. A história de uma máquina que aparece na pequena cidade, não se sabe de onde, nem para que, nem a que se destina.
Todos, de alguma forma, abordaram a questão da autobiografia, do pertencimento, dos apontamentos em cena de um viver/experimentar. Juliana traz o suporte da crítica genética para ilustrar sua visão, levanta a bandeira latino-americana, junto à direção preciosa de Amauri Tangará e eu fico a pensar nessas partituras de ação que a atriz (aqui seria a diretora) revela.
Tatiana fica com a incumbência de fechar as falas, agrupá-las de alguma forma no espaço delimitado pela proposta. E é de espaço que ela nos fala. De como a casa surge em sua vivência/experiência como diretora. Vem-me Bachelard com toda sua fenomenologia. Prometeu me parece o outro (na cidade) acorrentado. A máquina de cena fica bem clara em minha mente e os movimentos cíclicos parecem-me vigiar os passos. Lembro-me do filme As aventuras do Barão de Munchausen e os movimentos das águas do mar em que uma belíssima máquina de cena reproduz o movimento das marés.
A cena teatral está revigorada. Ouvem-se não um, mas muitos ecos em cena. Do alto do Olimpo os deuses pagãos provavelmente sentem-se revigorados com a evocação que o movimento proclama. Mato Grosso está muito bem representado nas artes cênicas e em sua correspondência direta com a produção acadêmica que se territorializa, à margem de toda e qualquer teoria, pois a experiência em si fala mais alto. A crítica precisa do objeto, mas este, vive por aí, bicho solto e nem sempre gosta de ser aprisionado. Se pensou, se prometeu, nunca será totalmente acorrentado.
*Luiz Renato de Souza Pinto é professor de literatura, poeta, escritor e ator performático