Por Leonardo Roberto*
Os riffs da guitarra, violentas batidas nos tambores e pratos da batera, o transe nos olhos do baixista, as duas mãos devotas no microfone, transferindo energia para o corpo do vocalista, que olha distante a plateia e irrompe seu semblante sereno ao liberar a fúria das cordas vocais. Cerveja respingando dos copos, de um lado headbangers armam os cotovelos, outros com os braços em riste fazendo o simbólico mano cornuto, ao fundo alguns fitam, quase imóveis, não fosse pelos sutis movimentos da cabeça ao ritmo da melodia, o quarteto no palco. Há alma, suor e rebeldia ali, um sentimento que transcende as barreiras da idade, conecta os old school’s aos seus eu’s mais novos e inflama o espírito dos mais jovens. O Rock N’ Roll se mostra poderoso, atemporal e revolucionário. Certamente poderoso e atemporal, mas infelizmente, cada vez menos revolucionário.
Por mais que os Beatles tenham virado as costas para o stablishment americano, conservador e nacionalista, trazendo a psicodelia, o orientalismo e referências as drogas para a música comercial dos anos 60, que o Creedence e tantos outros tenham escancarado a indignação com a Guerra do Vietnã ou Bowie, Robert Plant e Mick Jagger tenham naturalizado a transgeneridade em suas performances, é inegável que a política e a economia global seguiram seu rumo natural, colhendo frutos do fenômeno que foi e é esse gênero musical.
Enquanto hinos motivavam toda uma geração de jovens nos anos 60, conglomerados da indústria fonográfica acumulavam não só o capital, mas o poder de ditar o quê e como o grande público deveria consumir a música. Quando os Beatles se recusaram a fazer turnês, alegando não poder desenvolver o som experimental que pretendiam em shows ao vivo, passaram a focar seu trabalho em álbuns de estúdio, soou como uma vitória do poder criativo da música contra o poder financeiro da indústria. Essa decisão teve um valor simbólico, de fato, e também proporcionou álbuns que se tornariam clássicos instantâneos como “Sgt.Pepper and the Lonely Heart Club Band” e “Revolver”, mas também ajudaram a canalizar os ganhos provenientes de sua música.
O fenômeno do grupo inglês movimentava as economias locais onde quer que passassem em suas turnês e a partir de então os ganhos seriam cada vez mais concentrados nas mãos das gravadoras que comercializavam seus discos. Além da chamada interação Hardware/Software (quando a mesma empresa produzia os discos e os toca-discos, como no caso da CBS, RCA e Columbia Records, gravadoras que viriam a integrar o gigante conglomerado alemão da PolyGram) o consumo dos LP dentro das casas, nos próprios aparelhos, reforçava, sutilmente, a ideia da privatização da cultura, da música como um bem de consumo.
A escola de Frankfurt já denunciava essa lógica décadas antes, ao afirmar que a indústria cultural, um de seus principais objetos de estudo, visava, a grosso modo, a estandardização dos produtos culturais, priorizando o lucro e promovendo uma negação do pensamento crítico na sociedade pós-industrial, aprofundando a chamada “crise da Razão”, apresentada por Adorno e Horkheimer em “Dialética do Esclarecimento”. Essa visão mercantil da cultura fazia com que fosse reproduzida uma lógica produtivista nos momentos de lazer das massas, a mesma sectarização e objetividade do chão de fábrica e do trabalho de escritório dentro de casa, ao ouvir uma música em seu próprio toca-discos.
Já não era necessário participar de ambientes sociais para ouvir uma boa música. Além de criar a possibilidade de consumir “sua” música, à sua maneira, a indústria das massas produzia visando a identificação do público com a obra, como se fosse feita para ele exclusivamente, onde poderia se projetar e identificar-se com a história, seus personagens e valores. Adorno cunhou o termo “pseudo-individuação” para descrever o processo em que a indústria estratifica seus produtos culturais (gêneros e sub-gêneros, no caso da música) para todos os segmentos da sociedade, indicando heterogeneidade, enquanto promoviam valores e ideias homogêneos oriundos das classes dominantes.
Ainda considerando essa ideia, não podemos supor que o Rock N’ Roll represente uma unidade de valores, afinal, é evidente que há o espaço de mundos entre o glam rock e o grunge. Uma pesquisa pouco aprofundada pelo nome do vocalista da banda texana Pantera, Phil Anselmo, na aba de notícias do Google e há de se reconhecer a dificuldade de enquadrar o grupo no mesmo universo do heavy metal que o Sepultura, embora haja similaridades quanto a sonoridade da música.
Há pouco tempo me deparei com uma ótima matéria da revista Medium, que confesso ter me perturbado a princípio (por ser hoje e acredito que sempre, um entusiasta do Rock N’ Roll), ao ler que “ O rock se tornou um senhor branco, arrogante, machista, conservador e bunda mole. E, no Brasil, a partir dos anos 80, ele ajudou a nos fazer ter vergonha da nossa cultura, dos nossos cabelos e dos nossos sotaques.”. O artigo é centrado na questão de como o Rock nacional dos anos 80 deixou a música brasileira mais branca e careta, tendo carregado consigo uma visão de superioridade infundada e superficial quanto aos outros ritmos brasileiros.
Sem dúvidas, uma ótima leitura para quem se interessa pelo tema (e talvez para entender a cabeça do Lobão), mas um ponto chave para reflexão que proponho está nas referências do artigo de Fred Di Giacomo, que traz um artigo da revista americana Cuepoint, sobre uma entrevista em que Bob Dylan opina sobre o que realmente matou o Rock N’ Roll. Por mais que o óbito do Rock tenha sido atestado inúmeras vezes, até mesmo por estrelas importantes como Gene Simmons, vocalista do Kiss, o ganhador do Nobel de Literatura vai muito além da superficialidade e do saudosismo encontrado em argumentos que atestam que o gênero encontrou seu fim com a rápida ascensão e decadência dos Sex Pistols, com o suicídio de Kurt Cobain ou por não chegar mais no topo dos rankings anuais da revista Billboard, como sugere o artigo da revista Veja.
O músico norte-americano que profanou sua aura mística folk com canções que influenciaram movimentos civis para se converter à guitarra elétrica e reverenciar (e ser reverenciado pelo) o rock nos anos 60, atribui ao racismo da indústria, separando o rock entre o rock para brancos e o rock para negros, tal como acontecera com o jazz décadas antes. Argumenta que o gênero, como conhecemos, vinha tomando forma, desde o início da década de 50, como uma música racialmente integrada, ouvida por grande parte da juventude estadunidense em meio à segregação racial vigente no país.
Conforme o Movimento dos Direitos Civis tomava forma, o gênero vinha sendo dividido pela indústria, o Rock n’ Roll branco se desenvolveria na forma de Rockabilly, tendo Elvis como o ídolo maior, teria seu equivalente de música negra, o Soul. A invasão britânica da década de 60 viria para reforçar a identidade branca da música nascida de uma confluência de expressões musicais afro americanas como o Jazz, o R&B (Rythym and blues), o Country Blues e o Big Band.
Os escândalos de Payola comprovam a arbitrariedade da mídia ao ditar o quê e a quem ouvir. A revista Billboard denunciou, em 1959, o pagamento de subornos por parte das gravadoras para os discotecários (conhecido como Jabá, no Brasil) das rádios, veículo de comunicação mais difundido no mundo até então, para que tocassem determinadas bandas repetidas vezes. Logo, o stablishment conservador teria mais uma ferramenta para atribuir uma identidade branca a um som que não era particularmente bem visto pelos “cidadãos do bem” da época. Denunciava a sexualidade e imoralidade da música que ameaçava os jovens, a nova força produtiva dos EUA no pós-guerra e os maiores ouvintes e consumidores do Rock N’ Roll. Analisando as grandes bandas dos anos 50 até os dias de hoje percebe-se uma evidente proeminência de artistas brancos como sendo algo natural.
Ainda que tivesse as ferramentas para ditar o consumo das massas, por diversas vezes a indústria cultural teve de abrir concessões possivelmente indesejadas. O recém-falecido Chuck Berry foi icônico nos anos 50 com seu gingado, irreverência no palco e domínio da guitarra, sem sair ileso, é claro, sendo preso em 1959 por “motivos difusos”, logo após inaugurar uma casa noturna racialmente integrada. Isso não o impediu de ver sua clara influência nas gerações posteriores. Berry viveu para ver, 10 anos depois, outro negro americano sendo o artista de Rock mais bem pago do mundo na época e líder da banda que foi o ponto alto do mais icônico evento da contracultura dos Estados Unidos nos anos 60, o Festival de Woodstock.
O caso de Jimi Hendrix é ainda mais expressivo, pois o rock já havia sido majoritariamente embranquecido no mainstream e o ex-paraquedista do exército americano era, além de frontman de uma legítima banda de Rock e não de Soul, o maior guitarrista do mundo. O capital financeiro e ideológico da indústria não foi capaz de impedir que um negro ateasse fogo em sua guitarra em um show ao vivo e tocasse com os dentes ou como quisesse. É inimaginável o que poderia ter sido criado por Hendrix se não tivesse morrido aos 27. O cara era foda.
A despeito de toda pretensão de manter as expressões culturais sobre controle, os formadores de opinião que representavam as classes dominantes e a indústria não foram capazes de impedir a admiração da música negra pelas massas. Mesmo sendo desmembrado do Rock e todo seu sucesso comercial, a música Black seguiu seu próprio caminho e o fez de maneira brilhante. James Brown é absoluto no funk e o Funkadelic, e seu líder George Clinton inseriram a psicodelia com maestria no gênero, tornando turva a linha que separava o funk psicodelico do rock. Nina Simone e Aretha Franklin destilaram sentimento e sensualidade em suas canções, em diversos gêneros musicais. O hip-hop tomou corpo nos anos 70 e levou para o mundo o rap, gênero musical mais ouvido atualmente. São inúmeros casos em que o puro talento derrubou as estruturas racistas da indústria fonográfica, mas ainda assim é preciso olhar para as cicatrizes que permanecem.
Ainda que nunca tenha sido função do Rock N’ Roll problematizar as infindáveis contradições da sociedade e muito menos propor soluções para elas, é importante se distanciar e ver o que sua história nos diz. O Rock é cultuado no mundo todo e no Brasil não é diferente. Mas, apesar de toda sua influência, em termos estéticos a sociais (mesmo com suas contradições), é válido refletir sobre o quanto devemos contemplar ou ao menos prestar o devido respeito ao que é nosso, a expressão cultural regional, a cena local.
É impossível excluir a hegemonia cultural anglo-saxã que interfere em nossas identidades, mas podemos fazê-lo com a noção hierárquica de cultura (meus pêsames a quem diz que o funk ostentação, rap e etc… são músicas de quem não tem cultura) e com nossos preconceitos para que possamos pensar e contribuir em sociedade. Empresto de Caio Prado Jr em “A Revolução Brasileira” a definição de revolução como sendo: “.. o processo histórico assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas sucessivas, que, concentradas em período histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais de sociedade..”, assim, me questiono se o espírito do rock está mais próximo da revolução ou de uma insurreição, há tempos contida. O rock é um símbolo de desobediência, questionamento e de provocação social. Um símbolo e não a desobediência em si.
*Leonardo Afonso Roberto é estudante de Comunicação e entusiasta da música
Ótimo artigo, com boas referências e exemplos. Adorei a forma como analisou o rock no modo música e influência cultural.
muito bom texto, ideias e estrutura. queria mesmo ler alguém ‘desenhando’ em português do brasil o porquê de o rock hoje ser ‘som de tiozão’.