Por Santiago Santos*
A Semana Sesc de Leitura e Literatura tem, nos últimos anos, iniciado seus trabalhos com nomes de destaque do cenário brasileiro contemporâneo, em bate-papos informais nos moldes das grandes feiras e festas literárias. Já passaram por Cuiabá os escritores Fernando Bonassi, Marina Colasanti, André Sant’anna, Ricardo Azevedo e Michel Laub, entre outros. Em 2017, foi a vez de Marcelo Maluf e Jacques Fux, na noite de 25 de abril, no cinema do Sesc Arsenal.
De comum entre ambos, não apenas a idade (próximos dos 40), mas uma trajetória literária que começa em pequenas editoras, é impulsionada por prêmios e atinge um patamar de popularidade, ao menos no âmbito da literatura mainstream, que lhes permite viver essencialmente desse mercado, ainda que de maneira oscilante e aventuresca, rotina que requer uma ultra disciplina do autor enquanto empresário de sua própria persona, o que muitos não imaginam ser propriamente a tarefa do escritor mas é a realidade de muitos dos contemporâneos.
Não são os direitos autorais que lhes geram renda (quem dera; os autores brasileiros costumam levar alguns anos para esgotar as tiragens iniciais de 1 a 3 mil exemplares de suas obras, com exceções, e levam 10% sobre o preço de capa), mas atividades relacionadas, como a participação em bate-papos, ministrando oficinas e palestras, exercendo papel de júri em concursos literários, traduzindo, prestando serviços editoriais, recebendo incentivos e bolsas de criação literária e ganhando um ou outro prêmio quando possível (os prêmios São Paulo que Maluf e Fux ganharam renderam a cada um deles 100 mil reais). É a realidade também, por exemplo, do escritor Julián Fuks, que no mesmo dia do bate-papo iniciou oficina no Sesc Arsenal sobre a autoficção; Fuks ganhou no ano passado o Jabuti, foi finalista do São Paulo de Literatura e ficou em segundo lugar no Oceanos.
O bate-papo
A mediadora da vez foi a professora e doutora em literatura Divanize Carbonieri, de Mato Grosso, que pediu aos autores que abrissem falando um pouco da gênese de cada obra, da reconstituição familiar que Marcelo traça e da reconstrução étnica sobre a qual Fux se debruça.
Fux, por sua vez, disse que sempre colecionou loucos. E que resolveu tirá-los da caixa para escrever o romance Meshugá. Ele selecionou oito deles, todos judeus (incluindo Bob Dylan e o ator pornô Ron Jeremy) e mergulhou em suas biografias, obras e psiquês para entender o que aconteceu para que se tornassem quem são ou foram. Para muito além da reconstituição jornalística, Fux mergulhou, por meio de um narrador muito Fuxsiano, digamos assim, na literatura para extrapolar, enfrentar e encapsular suas próprias conclusões, expulsando-as na forma saborosa de literatura. E não saiu ileso: “Esse narrador entrou na cabeça desses personagens e ficou molestado, atacado, sensibilizado”. Citou, para exemplificar brevemente o livro, a história de Bobby Fisher, prodígio norte-americano do xadrez e garoto-propaganda dos EUA durante a Guerra Fria, que alcançou a façanha de derrotar um favorito russo em um campeonato e desapareceu do mapa em seguida, ressurgindo apenas vinte anos mais tarde em um programa de rádio nas Filipinas para parabenizar Osama Bin Laden pelo ataque de 11 de setembro às Torres Gêmeas.
Sobre a autoficção, bastante presente na literatura hoje, com a proeminência de autores como Karl Ove Knausgard, Elena Ferrante, o já citado Fuks e os próprios Maluf e Fux, disseram que não é uma técnica que os define (seus novos projetos não partem de seus históricos de vida) ou que defina a literatura brasileira atual, que é tão ampla e bem-sucedida em diversos campos.
Sobre seus inícios na literatura, Maluf disse que sua porta de entrada foi a coleção Para Gostar de Ler, onde conheceu muitos autores. Depois uma guinada à poesia brasileira e eventualmente o encontro com Fernando Sabino e seu O Grande Mentecapto, romance formador e sua indicação corriqueira aos jovens leitores, que como ele, talvez possam “passar a noite em claro lendo o livro até acabar”. Citou também os grandes nacionais, como Graciliano, Machadão, Drummond, Lispector e Rosa. Fux falou dos autores que lia e não entendia “porra nenhuma”, e que por isso mesmo despertavam fascínio, como Borges e Rosa. Mais tarde, mais maduro, voltaria a esses livros e se apaixonaria perdidamente. Considera o Grande Sertões: Veredas seu grande livro, e falou um pouco sobre a trajetória crítica dessa obra, que no início foi injustiçada e mesmo descartada por muitos leitores experimentados. Também tem admiração pelos clássicos, que proporcionam experiências transformadoras, como a pela qual passou lendo a série de Proust, Em busca do tempo perdido.
Dicas de escrita e a realidade literária atual
Questionados pelo público quanto a ritmo de produção e dicas de escrita, Maluf disse que a ficção demanda muito. Exige concentração e foco, coisa facilmente destruída hoje em dia por qualquer barulho, ligação ou notificação. Afirmou ter menos tempo do que gostaria para escrever por ter que lidar com a parte burocrática da vida de escritor. Mas disse que o escritor também “trabalha lavando louça”, criando suas histórias. Fux concordou, endossando que a ficção é de uma exigência tremenda, e que se fôssemos calcular quanto um escritor ganha por hora, ninguém o faria. É um ato de paixão e entrega. Sobre as dicas, Maluf comenta: “Foque na primeira página de qualquer coisa, tudo tem que estar ali, toda a força, para que o leitor queira continuar lendo”. Já Fux traz à tona Alice no País das Maravilhas (de outro matemático, Lewis Carroll): “Comece pelo começo, chegue até o final, e pare”. E o de sempre: revisão, revisão, revisão.
Maluf também falou sobre o insólito em seu livro, de como os carneiros são símbolos importantes e de como há uma justificativa para que falem, uma herança genética que remonta ao nascimento de Cristo. Fux, ao responder porque não inseriu nenhum judeu brasileiro louco no livro, disse que o seu recorte não chegou a contemplar um, mas considerou seriamente escrever sobre Samuel Rawet, escritor polonês naturalizado brasileiro que protagonizou uma contenda com Moacyr Scliar e eventualmente atacou a própria religião judaica em que acreditou ao longo da vida. Fux chegou a citar Clarice Lispector no livro, mas brevemente, e disse que descartou outros bons também, como Bob Dylan. Maluf brincou dizendo que o judeu louco brasileiro já estava no livro – era o seu autor.
As brincadeiras entre ambos foram uma constante. Fux, sorridente, solto e desbocado, e Maluf, mais contido e intenso, protagonizaram quase duas horas de conversa diante de uma plateia cheia, interessada e participativa. No fim leram pequenos trechos de seus romances e disseram ao público que haviam trazido seus livros para vender e autografar ali mesmo, após os aplausos. A vida do escritor contemporâneo é mesmo isso: glória comprada de centavo em centavo, sem vergonha nenhuma da arte. Como Maluf destacou no final: “Temos leitores, mas poucos leitores. Pouquíssimos, se comparados com os leitores de best sellers estrangeiros. Mas não estou reclamando. Graças a esses poucos consigo estar aqui agora, falando e vivendo de literatura. Gostaria de possuir um público maior, é claro, mas sou muito grato por estar aqui. Sei que muitos trabalham para chegar aqui, muitos gostariam de estar nesse lugar”.
Texto originalmente escrito para o blog Parágrafo Cerrado – Encontros e Pregnâncias.
*Santiago Santos é escritor, tereréficionado, tradutor e jornalista.
Mora em Cuiabá. Publica drops literários no flashfiction
AVE! Literatura…AVE! Escritores…