Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Bárbara é advogada. Ela diz não compreender o sentido que dou ao OK em nossas conversas digitais. Digo que o emprego de maneira diversa, conforme a situação. Com a sua insistência prometo dedicar uma crônica sobre o uso, a fim de me tornar melhor compreendido em nossos diálogos. Para ela, o uso do termo só se faz necessário para denotar alguma contrariedade. Confesso que a utilizo em meu cardápio de possibilidades.

seminarioEscrevo agora de um quarto de hotel na cidade de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Estou aqui para o II Seminário Internacional Pós-Colonialismo, Pensamento Descolonial e Direitos Humanos na América Latina. A Conferência de abertura foi proferida pelo performático professor Dr. Oscar Eduardo Guardiola Rivera. Intitulada The People Are Missing (La gente há desaparecido), deu o tom do evento ao falar sobre guerra e violência como religião. Ao fundo projetava-se uma pilha de caveiras rodeada por abutres. Exercendo domínio completo do palco, conforme discorria sobre o tema ia soltando as páginas, que levitavam por uma fração de segundo antes de ganhar o chão.

Lembro da preocupação de Bárbara. Se a conversa flui de maneira inteligente, bacana, interativa e estou de acordo com o que vem de lá, o OK tem uma função didática que prescinde de maiores explicações. Está postulando um lugar ao lado do discurso com o qual concordo ao pé da letra, entende? Neste caso dizer OK significa que você se enxerga na fala de seu interlocutor, olha que coisa bacana!

luiz-bellaGuardiola continuava batendo um bolão enquanto falava de redes de circulação de imagens “lupens”. Hablava como el cine se utilizava de perspectivas animistas para  tratar as questões ameríndias e de como isso constituía um gesto retro futurista, verdadeira cortina que ocultava verdades. Enquanto apresentava o (falso) binômio religião-moralidade e a antropologia como única disciplina capaz de unir o legado de Kant ao de Spinoza, soltava os seus suspensórios. As páginas iam ocupando o palco de maneira a espaçar o conhecimento ao rés do chão. Ok! (Este último OK cobra de meu leitor uma concordância com meu discurso, diga-se de passagem).

Mas voltemos à fala de Oscar. “Somos las ruinas”; Walter Benjamin parece apossar-se de Guardiola que afirma ser a violência jurídica do estado responsável por essa limpeza (étnica), transformada em fantasia coletiva; em território francês (Le Pen), brasileiro (Temer) e Colômbia (Oribe). E lança um questionamento retrô: “ameríndios teniam alma? Europeus teniam cuerpo?”. Ao projetar uma Mona Lisa com aura indígena, como se fosse um cocar, fala em cópias e faz referência às imagens autóctones utilizadas por certo mimetismo de base aristotélica. Ok: agora me vêm à mente algumas telas de Irigaray.

5607_31Oscar nos convida a darmos as mãos entabulando as relações do que chama de barroco elaborado com o concretismo vanguardista e elementos da antropofagia modernista. Converso depois com ele sobre Macunaíma e de como Mário de Andrade foi buscar na Amazônia colombiana o referencial para sua obra de 1928. Ao final de sua Conferência, uma assistente tenta juntar as páginas dispersas e ele a impede. A seguir fotografa o chão performatizado pelos papéis avulsos abraçando em seguida a cerimonialista. Os papeis ficaram no chão, metaforizados na mesa redonda a seguir na fala da professora Elida Lauris como o verdadeiro dinossauro, referência à discussão constitucional, em tempos de fora Temer.

Assistindo a uma das sessões de comunicação do GT “Direito, subalternidade e colonialidade”, pude apreciar a sensibilidade estética e analítica de Alice destrinchando em poucas palavras sua dissertação acerca da pesquisa com travestis nos presídios de Porto Alegre que expulsou de mim um poema na hora e pedi licença para declamá-lo àquela seleta plateia. Reproduzo aqui o texto:

ALICE EM UM PAÍS SEM MARAVILHAS

Ela me fala de Foucault

Como quem fala de um deus

Mas não é o que pensa

Apenas infere

O dom de se impor

Conceitualmente

Aqui

Agora

Ao falar do travesti

da travesti

o que é legal

e de direito

ela fala de mudança

de um estado de direito

que à força

do que se chama de justiça

padroniza comportamentos

e se enfeitiça

subalterniza

o diferente

é fato,

é direito

o que se faz a bom termo

como política de estado

e é apenas

política de governo!

Alice, como Bárbara, é advogada. Guardiola é professor de uma universidade londrina, no hemisfério norte. Somos todos frutos de nossos sonhos e possibilidades, mas nem por isso devemos deixar de alçar cada qual seus próprios voos. Queria com isso apenas dizer que podemos ser o que quisermos, onde quer que seja, okay?

Luiz Renato de Souza Pinto, escritor, poeta, professor e ator performático
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

  1. Eu acho incrível seus textos por isso, por teletransportar para dentro da sua narrativa e tecer contigo os fios que enlaçam todo o significado do que você conta. Obrigada sempre, aprendo muito nessa leitura. <3

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