Por Luiz Renato de Souza Pinto*
– Este é o meu dote. Sal para o seu reino, meu marido. (…)
– Daqui par adiante a Polônia vai ter sal suficiente,
e jamais precisaremos comprá-lo de outros reinos
(WIERZCHOWSKI, 2005, p. 43-45).
A convite do Serviço Social do Comércio (SESC), andei pela Bahia conversando com leitores de primeira hora, como também com alguns mais experimentados na arte de codificação e aprofundamento dessa arte de se costurar as palavras. Vivo esse hibridismo tão em voga atualmente, em vários níveis; sempre gostei de transitar entre áreas distintas do conhecimento. Assim, graduei-me em Letras, habilitação em Literatura, cursei Mestrado em História, trabalhando com obras literárias e doutrinárias de José de Mesquita, e o doutorado com romance histórico, analisando a escrita de Ana Miranda, de maneira que o conceito de fronteira já o experimento há um tempo. Recebi olhares de soslaio por historiadores e letrados, como também de artistas cênicos e literatos, por não me definir bem em uma ou outra casinha. Gosto de andar sem teto, poder repousar meus conceitos sobre vários compartimentos de um mesmo guarda-chuva, metáfora epistemológica que cultuo sem maiores pudores.
A viagem mostrou-se muito produtiva, tive ideias para três romances que anotei rapidamente antes que algum espasmo nervoso as dissipem e prometi a mim mesmo dedicação maior para que fluam nos próximos anos, deixá-los nascer independente dos caminhos tortuosos que venham a ocupar. Um deles terá como protagonista uma mulher construída à semelhança de minha avó materna que iluminará os cenários por onde andarão personagens imaginados, sobretudo pela leitura de páginas de alguns romances de Letícia Wierzchowski, companheira de viagem pela terra de Caetano, Gil, Betânia, Caymmi, Brown.
Não é possível sair impune de uma leitura profunda. Miti, pequeno personagem de O Cristal Polonês, lembrou-me A Bolsa Amarela de Lygia Bojunga, cuja protagonista herda roupas de uma tia rica, e por ser caçula nunca sobra nada para si. As irmãs vão escolhendo as roupas melhores e ela acaba sempre ficando sem nada. Até que um dia, diante da recusa de todas em aceitar certa bolsa, ela toma para si, com muito amor, seu primeiro objeto de conquista. Miti é assim. O caçulinha de uma família pobre. Traja-se com roupas que não são o seu manequim, mas é o que sobra para ele.
Uma roupa grande, decerto que aquele pulôver tinha sido do primo Stalin, que aquelas calças de um veludo cotelê azul-royal, tão alegres e esquisitas, tinham vindo de um outro dono, e ainda eram tão grandes nas pernas finas de Miti, tão para sempre grandes nele… (WIERZCHOWSKI, 2003, p. 112).
Embalada pela tradição rio-grandense de grandes romancistas, Letícia Wierzchowski segue os passos de Tabajara Ruas, Assis Brasil e Érico Veríssimo, para tratar de apenas alguns, no sentido de dar amplitude poética com sua escritura às raízes sulistas e brasileiras da boa literatura. Por ter sido contemplada com a adaptação de seu (já) clássico A Casa das Sete Mulheres para a televisão, a escritora convive com a pecha de ser uma autora comercial, taxada por parte da crítica. Mas a experiência de um simples mergulho em sua obra é suficiente para dissipar essa visão de fora para dentro da escritura literária. Inspirada por Garcia Marquez e seus Cem anos de Solidão, também cria sua Macondo. E reproduz o que anuncia logo às primeiras páginas em Terebin:
Jan Wierzchowski, meu avô, não tivera uma vida fácil. Desde menino seu temperamento forte se fez salientar e, talvez por isso, o pai, também, de nome Jan (pois sempre houve e sempre haverá um deles em cada geração da nossa família), tinha para ele uma palavra sempre mais dura, mais inexpugnável, e talvez mais cruel (WIERZCHOWSKI, 2006, p. 14).
A sua vontade de conhecer suas raízes, de mergulhar em um universo mágico, mítico, a fez vadear incessantemente por documentos deixados pelo avô. Buscou auxílio para traduzir cartas, foi atrás de velhos amigos do avô, aprofundou-se por quanto pode em busca de informações, como cabe a um curioso romancista que aventura pelo romance histórico com propriedade. Em O dragão de Wawel e outras lendas polonesas, obra em que dividiu com Anna Klacewicz a publicação, algumas das lendárias histórias sobre a gênese de um país marcado pelo holocausto, Letícia busca elementos lúdicos para amenizar o trato com a temática da guerra. A história do trompetista de Cracóvia; a história de Wars e de Sawa, a sereia; o dragão de Wawel; a história do dote de Santa Kinga; a lenda do primeiro homem na lua; a lenda do pão de mel da cidade de Torun; a lenda dos três irmãos; a triste história da rainha Jurata e do pescador; Janosik, o fora-da-lei; a cidade submersa; essas são as pequenas narrativas que os trazem um pouco do universo mítico do nascimento da Polônia.
Voltaríamos no sábado, dia 06/05, mas nosso retorno foi antecipado em um dia por conta do aniversário, neste sábado que passou, de um dos filhos de Letícia, o mais novo, de nome Tobias. O mais velho, João, já é um rapagão, como ela deixa entrever com orgulho. Seu nome em polonês seria Jan, o mesmo do avô. Letícia continua a tradição de família, e olha que seu avô nunca ouvira falar do escritor colombiano.
Salvador, Feira de Santana e Santo Antonio de Jesus são as cidades que visitamos. O diálogo com alunos do fundamental, médio e superior, com atores e estudantes das artes cênicas, com debatedores, professores e artistas desse pedaço representativo da Bahia foi uma viagem à parte. Nunca somos os mesmos depois de ler uma grande obra. Nunca seremos os mesmos depois de cada abraço apertado, sentindo a energia do próximo fazendo com que esteja mais próximo, e não distante. Obrigado ao SESC de Mato Grosso pela indicação, ao nacional pelo aceite e ao baiano pela receptividade. Estou aqui, mas volto, afinal de contas, para que pressa, se a Bahia é mesmo logo ali?
REFERÊNCIAS
WIERZCHOWSKI, Letícia. Cristal Polonês. Record: Rio de Janeiro-São Paulo, 2003.
______________________. Uma Ponte para Terebin. Record: Rio de Janeiro-são Paulo, 2006.
______________________, KLACEWICZ, Anna. O dragão de Wawel e outras lendas polonesas. Record: Rio de Janeiro-São Paulo, 2005).
*Luiz Renato de Souza Pinto é poeta, escritor, professor e ator performático
esse tipo de cronica aqui é uma maravilha “rapá”…
Esta de Parabéns…