Por Sissy Cambuim*

Não é preciso se interessar muito por jornalismo ou por história para conseguir puxar na memória, seja das aulas da escola, filmes e séries ou até das conversas com quem ainda tem a lembrança fresca na cabeça: quando se fala em ditadura, regime militar no Brasil, logo se pensa na censura à imprensa e nas salas de aula.

A tortura maltratou carne e osso, voz e garganta, cabeça e mente, corpo e alma. A dureza daqueles dias foi marcada por tentar arrancar de cada um de nós os nossos sentidos, o olhar, a audição, o tato, paladar e olfato. E mesmo assim, tudo o que se podia fazer era sentir.

Sentir. Ser sensível. Sensorial. Com senso. Cada um que passou pelos podres porões da ditadura levou consigo milhares.

Na saída, o silêncio. Na dor, o grito. Mas esses gritos mudos não haviam de ser escutados por ouvidos surdos. Muito pouco se sabe ainda, no senso comum, das histórias reveladas em segredo a amigos, filhos, esposas, companheiros.

Se sabemos – o ainda pouco que sabemos -, se encontramos nas páginas dos livros de história, é porque os registros foram escritos. Tornaram-se fatos com tinta no papel, o sangue que jorrou de cada um, dos lembrados e dos muitos anônimos.

“Não tem nada demais em escrever, basta sentar lá e sangrar”, disse Ernest Hemingway. Registrar a palavra é doar um pouco do seu sangue, da sua alma, para o papel que toca o outro. É transfusão de percepção, de vivência, de filtros, de vida que sai e fica. Imagine escrever sem tinta, quando lhe arrancam a caneta, as fitas e teclas da máquina. Imagine falar quando calam a sua voz. Mais do que nunca, será seu sangue pulsando que fará seu corpo se comunicar.

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Mas esse sangue teria sido em vão, as palavras teriam se perdido do tempo, no espaço, no vazio e no chão dos porões se não encontrassem outras veias para pulsar.

Quando você​ pensa no jornalismo dá época da ditadura – faça um pequeno esforço – não é difícil vir à memória histórias de como as informações se travestiam de receitas de bolo e outras tantas. Era preciso burlar a censura. Era imperioso não se permitir censurar.

Mas e “se fosse” nos dias de hoje. Você estaria preparado para ler nas entrelinhas? Você seria capaz de entender o que está acontecendo? Você se interessaria? Você conseguiria ler além do óbvio? Ir além do título?

Ao passo em que nossos hábitos mudaram, que o jornalismo mudou, o leitor também mudou. A notícia precisa chegar na palma da mão. Rápida, clara e óbvia. A informação não pode consumir meu tempo: ele é escasso e precioso. É dever do outro me manter bem informado, apenas com o que me interessa, sem que eu precise ter trabalho para interpretar. Quero o alimento liquidificado, não posso mastigar. Digerir leva tempo e eu não tenho.

Quanto tempo a gente passa ocupando nosso HD com conteúdo que não serve? Você pode pensar nisso às vezes e, à partir daí, selecionar o que te julgar conveniente. Mas já parou pra pensar quem é que te diz o que serve ou não?

Tente, por um segundo, imaginar-se uns anos atrás. Nem precisa voltar muito no tempo, quatro décadas são mais que suficientes. Pense no silêncio ensurdecedor. Pense nas bocas amordaçadas. Pense.

Se fosse preciso usar criatividade para contar as histórias, como você iria interpretar? Como você iria descobrir uma mensagem cifrada? A ditadura teria que entrar nos seus poros como gás lacrimogêneo para te abrir os olhos?

Imprensa marrom, jornalzinho comprado, mídia golpista. Certamente você já ouviu alguma dessas expressões. Há quarenta anos não era diferente. Os termos eram outros, mas a investida para tirar a credibilidade, a voz, era a mesma.

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E foi nos “jornalecos vermelhos” e também na “mídia golpista” que o sangue saia de uma veia a outra, driblando olhos de censores, cassetetes e armas de fogo. Era preciso falar, mas falar de uma forma diferente.

A censura não foi sobre silêncio. Pra poder informar, era preciso falar, mesmo que a voz gritasse coisas que a alma não dizia. A resistência não foi sobre selecionar, foi sobre ampliar o campo de leitura.

Para vencer a censura é preciso que antes de mais nada você não se permita censurar. A suposta liberdade tão duramente conquistada não pode ser aprisionada pela sua autocensura. Mais do que nunca “é preciso estar atento e forte”.

Não espere que a “ditadura” bata à sua porta, toque a campainha, seja anunciada por sirenes e alarmes. Ela se instala silenciosa e sutilmente como o gás que mata. Da mesma forma, não espere que a notícia chegue de forma óbvia e mastigada na sua mão. Esteja preparado para interpretar, ousar, ler receitas de bolo, crônicas esportivas, horóscopo, memes, textão no Facebook e posts no Twitter. Aprenda a ler com as veias quando os olhos estiverem cobertos de lágrimas.

*Sissy Cambuim é jornalista

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