Existem momentos na vida que enquanto os vivemos temos a exata noção de que serão inesquecíveis e nos acompanharão como uma única gota indissolúvel na imensidão do oceano da memória. Para mim, um desses momentos foi o pôr-do-Sol na Casapueblo no Uruguay. Se fecho os olhos consigo me transportar para aquele pequeno pedaço de lembrança e novamente me inundar com a poesia daquele fim de tarde avermelhado.

Foto Marianna Marimon
Foto Marianna Marimon

Depois de pegar um ônibus intermunicipal de Punta del Este, descer na rodovia e andar cerca de 20 minutos, já é possível visualizar a paisagem privilegiada daquele ponto específico. Os muros brancos na rua de paralelepípedos revelam o tesouro escondido por entre árvores e flores: Casapueblo é um museu. Construída e criada pelo artista uruguaio Carlos Vilaró é como um labirinto com suas escadas, andares, e obras de arte espalhadas. Sobe, desce, sobe de novo, desce, sobe e absorve o que é aquela casa que transpira cultura.

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Foto Marianna Marimon

Após passar por todos os andares a arte desperta um sentimento de reconhecimento, pertencimento. A emoção provocada pela história do artista ganha uma nova dimensão quando percebemos o universo artístico criado pelas suas mãos. O sentimento aumentou ao chegar no terraço para o entardecer.

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Foto Marianna Marimon

A casa construída ano após ano durante quatro décadas por Vilaró é como um quebra-cabeça em que cada pedaço se integra, se completa, mesmo que sua forma seja separada do todo. Lembrei imediatamente daquelas casinhas pequenas na Grécia as quais só conheci por fotos ou filmes, mas pensei “não é lá, é aqui, é o Uruguay e por isso ainda mais especial”.

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Autodidata e viajante incansável, Carlos Páez Vilaró nasceu em Montevideo em 1 de novembro de 1923. Foram 64 anos pintando, esculpindo, construindo e disseminando arte até o dia em que se despediu definitivamente do Sol, em 24 de fevereiro de 2014.

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Nesta caminhada também se dedicou ao cinema e à literatura. Expôs em todo o mundo e montou estúdios em Nova York, Tahití, Cameroun, Paris, São Paulo e Buenos Aires. Teve como amigos figuras do mundo da arte como Picasso, Dalí, Calder, Jorge Luis Borges, Jorge Amado e Vinícius de Moraes. Muitos deles chegaram a visitá-lo em seu recanto ensolarado.

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Foto Marianna Marimon

Foi em 1958 que Vilaró decidiu construir uma casa sobre as falésias rochosas de Punta Ballena. Sem planos e lutando contra as linhas retas, a Casapueblo foi construída de forma artesanal, uma obra conceitualmente mais humana, e uma grande escultura habitável. “Peço desculpa à arquitetura pela minha liberdade de João de Barro”, dizia ele.

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Uma taça de vinho para acompanhar esse momento único, um brinde à sincronicidade do Universo que proporciona encontros inexplicáveis: assim que me posiciono na sacada para ver o Sol se despedir no céu, música brasileira derrama de um saxofone e um violão.

Foto Marianna Marimon
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Com um grupo de brasileiros, cada um de um canto do país, que conheci no hostel onde me hospedei, compartilhei muitas risadas, a tal garrafa de vinho, a música de nossa casa em outra casa.

O Sol riscava o céu de vermelho e em um reflexo incendiou as águas plácidas do oceano. Então chegou o momento. A grande estrela vermelha cruzava a linha do horizonte enquanto a música cessava para dar lugar à voz rouca de Vilaró recitando seu poema de agradecimento ao astro-rei: Ceremonia del Sol.

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Os olhos se encheram de lágrimas, as palavras reverberaram do ouvido até o infinito e mesmo sem entender completamente o espanhol, seu sentido atravessou a minha existência. Gracias Sol. Ele que banha o mundo com a sua luz, que garante a vida, o alimento, que não diferencia ricos e pobres, que todos os dias provê energia enquanto nos acompanha, e a quem não dizemos obrigada.

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Foto Marianna Marimon

Vilaró me despertou para a simplicidade da vida. Um contemplar o Sol e aquelas palavras ecoando provocaram revoluções dentro de mim. Olhei para o lado e todos sentiam a mesma emoção, os olhos marejados pela luz vermelha no céu, pelo Sol, pelo mar.

O poema acaba. A poesia fica.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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