O rosto de um outro de Kobo Abe é um livro inquietante. Considerado um terror sobre a identidade, a náusea, a angústia, a agonia estão presentes nesta experiência. Lançado em 1964, foi adaptado para o cinema em 1966 (ainda não vi mas pretendo).
Com o rosto desfigurado após um acidente com ar líquido em seu laboratório, o protagonista precisa retomar a sua vida. Com bandagens cobrindo todo o rosto, tenta voltar à rotina. O trabalho, o casamento, o meio social.
A primeira cena que me choca é quando ele retira as bandagens do rosto e narra o ninho de sanguessugas que se encontra ali onde antes havia a face. A partir de então, começam os seus questionamentos sobre a instituição rosto.
Se o rosto é a via de comunicação direta com as outras pessoas, ele que não possui mais rosto, não possui mais alma?
O livro é dividido em três cadernos: o preto, o branco e o cinza, que ele escreve à mão para que a esposa possa entender o que o levou a sua empreitada em busca de uma nova face.
A necessidade de restituir uma via de comunicação direta com a esposa o lançou neste frenético delírio de construir um novo rosto. E assim, decide elaborar uma máscara para voltar ao convívio social.
“Decerto eu me perturbara com a questão da dualidade da máscara – a negação de um rosto ou de um novo rosto – e andara dando aquelas voltas desnecessárias por ter perdido de vista o ponto mais importante, qual seja, o de que se tratava também um padrão de comportamento.
Existe um número que chamamos de imaginário. Número estranho que, elevado ao quadrado, resulta negativo. Máscaras também têm alguma semelhança: quando uma é sobreposta a outra, parece-me que têm efeito negativo, ou seja, é o mesmo que não usar máscara alguma.”
O desconforto que carregava em seu rosto não devia ser dele, e sim da sociedade com o seu passaporte denominado rosto e que tentava enterrá-lo vivo. Quando enfim consegue criar um novo rosto, ao terminar a confecção da máscara, ela própria recém-nascida o transforma em outro.
Depois de algumas saídas com a máscara, decide retomar o relacionamento com a esposa, acreditando que ela não o reconhecerá com o seu novo rosto. O livro é o fluxo de pensamentos escritos no caderno. A narrativa é contada apenas pela voz do protagonista.
“Uma vez apagadas as luzes, a cortina descerá também sobre a mascarada. Em meio à escuridão, onde não há rostos sem máscara nem rostos com máscara, seria muito bom tentarmos criar confiança um no outro uma vez mais.”
Entre os questionamentos que o livro traz é impossível não relacionar com o período pós-guerra, a bomba de Hiroshima no Japão. É como uma grande metáfora sobre a guerra, a sociedade, as pessoas que se ferem, perdem membros e rostos. O rosto de um outro nos tira da nossa posição confortável e derrete todas as nossas certezas vazias sobre o poder da face – o que é o rosto, o que representa, o que destrói – das relações humanas, da sociedade, da rotina, do trabalho.
Em alguns momentos, lembrei do livro Hiroshima de John Hersey que com detalhes precisos traz a história de sobreviventes da bomba. Um destes japoneses, ao sair dos escombros encontrava corpos pelo caminho e pessoas agonizando de dor em seus momentos finais. Na cultura japonesa é imperdoável não ajudar alguém e enquanto ele caminhava atordoado por toda a destruição e morte, pedia perdão a todos que encontrava e não podia ajudar. Uma destas pessoas estende a mão e ele descreve que sua pele se desprendia como se fosse uma luva fina.
“Tratar a máscara como instrumento de ocultação do rosto é o mesmo que tentar convencer-me de que branco é preto. Se máscara é expansão da via de comunicação, disfarces destinados a ocultar o rosto seriam a interrupção da via, e os dois estariam em oposição. Ou então eu, que aqui me encontro com uma máscara na mão estendida, desesperado para escapar destas bandagens que me ocultam o rosto, não passaria de um ridículo palhaço.”
A máscara faz o caminho até a esposa. E a partir daí prefiro o silêncio.
“Por tudo isso, insisto que não se deve nunca menosprezar o poder da escrita. Pois escrever não é apenas transpor a verdade em letras: a própria escrita é uma jornada de aventuras. Não é andar sempre pelos mesmos lugares estabelecidos, como um agente do correio.”