Ele vivia em uma ilha. Desde o começo de sua existência, ele vivia sozinho em uma ilha. A ilha, com pouco mais de cem metros de diâmetro, comportava sem problemas todas as suas coisas. Espalhadas sobre a grama, suas roupas, livros e bugigangas eram suas únicas companhias no pequeno pedaço de terra sobre o oceano. Um guarda-sol rasgado, um par de coqueiros e um penico eram seus bens mais importantes. Às vezes, em dias onde a chuva escorria pelo buraco na lona e gotejava pelas folhas verdes acima de sua cabeça, podia sentir as dimensões da ilha aumentarem. No dia seguinte, andando pela nova faixa de areia em sua praia particular, percorria com a ponta dos dedos todas as partes que não tocavam a água. Ele mesmo nunca tocava na água do mar.
Era um problema antigo, este dele com a água do mar. Quando mais novo, sentia-se atraído por seu movimento, suas cores e brilhos ao banhar-se com o sol, mas nunca se aventurara em seus domínios. Notara que o suor de seu corpo, a saliva entre seus dentes e a urina que despejava por entre suas pernas, muito se assemelhavam a água do mar. Era consumido por um pavor incomensurável de mergulhar e se transformar em sal. Seu medo só se igualava ao seu desejo de se deixar desaparecer. Nos dias de sol escaldante, quando até a porcelana do penico parecia trincar com o calor, era tomado por uma coragem que o fazia aproximar-se do bater das ondas e se balançava para frente para trás, sentindo o cheiro da espuma esbranquiçada e das criaturas lá no fundo, mas nunca se convencia a dar o primeiro passo.
Com os livros, adquirira o conhecimento sobre o mundo além da ilha, cercado pelo oceano. Procurara nos exemplares de geografia, nos volumes sobre história e até mesmo nos gibis de ficção, mas jamais encontrara qualquer informação sobre ele e sua ilha. Perdido entre as marés turbulentas e o ir e vir de todas as coisas, respirava o ar e partilhava o espaço com vidas que ignoravam sua existência, mas desconhecia a solidão. Lera sobre ela nos livros, e sonhava acordado tentando concebê-la, mas para sentir falta era necessário primeiro possuir, e ele não possuía laços. Nos romances ficcionais, ao se deparar com casais e famílias, se emocionava com a ideia de sentir-se conectado com alguém. Quando a água salgada lhe rasgava a pele da face, mergulhava seu rosto na areia para impedir que se dissolvesse em água. Tinha medo e fascínio por esses momentos, quando a vida lhe fazia derramar um pouquinho de si para fora. Tomava o cuidado de nunca derramar-se demais, olhava para o oceano à sua volta com os olhos cheios d’água e se perguntava se o que via ali eram outros indivíduos, escorridos em sua essência, unidos para sempre a chacoalhar nas ondas. Talvez fossem todos água e ele o único a negar sua própria natureza.
Acordara um dia ao som de tambores e o céu enegrecido. Lá no horizonte, entre o dançar violento das ondas, avistava uma tempestade caminhando em sua direção. Podia senti-la no peito, seu coração batendo fora de ritmo, o ar sendo arrancado de seus pulmões ao invés de inflá-los, o leve formigar na nuca. Caíra na areia e permanecera imóvel, sentindo a eletricidade no vento eriçar seus cabelos do corpo. Nada merecia seu amparo. Suas calças rotas, os livros esgarçados, seu precioso penico, todos à mercê das intenções da tempestade que se aproximava. Seria ela gentil e partiria sem muitos alardes? Deixaria ela escapar um facho de luz e esperança? Ou levaria sua ilha para as profundezas do oceano, atirando ele e suas inseguranças em direção ao mundo lá em baixo, entre os dissolutos? Acompanhava com os olhos o grande obstáculo. Sabia que sua sobrevivência agora só dependia de si. Já havia superado outras tempestades, mas esta era maior do que qualquer uma que ele tinha visto. Suas extensões sumiam no envolver escuro das nuvens, trovões ecoando para todas as dimensões, reverberando dentro de cada célula de seu corpo. Nada poderia ajudá-lo. Passou em sua mente uma lista de seus pertences, algo que o fizesse evitar a tempestade. Uma cortina, um óculos, algo que o escondesse do destino, que o tirasse da linha de frente de sua própria vida. Nada de útil.
O chão aos seus pés começara a se mover, as extensões de sua ilha tomando o espaço do mar. Talvez se ela crescesse o suficiente, se aumentasse a distância entre ele e o resto do oceano, ele pudesse correr em outra direção, rumo à outros problemas, obstáculos menores. Dentro de si, um pequeno oceano contido aos poucos alcançava a superfície. Uma gota de suor escorria por sua coluna e pequenas lágrimas de desespero se aglomeravam nas beiras dos seus olhos. A ilha crescera mais uma vez, dobrando de tamanho, água virando areia, ele virando água. Levara as mãos ao rosto, pequenas gotas de si mesmo vazando entre os dedos, uma poça de emoções se aglomerando em baixo dos braços. Ao tocar a areia, suas pequenas parcelas de existência evaporavam, criando anéis de fumaça que desapareciam no ar.
Sentado agora numa imensidão de areia, assistia apreensivamente enquanto a tempestade lambia os primeiros metros de terra. Ele podia ver agora que a tempestade era infinita, seus limites cobrindo todo o firmamento, engolindo a luz que um dia aquecera sua ilha. Independente da direção em que escolhesse correr, seus raios o alcançariam e se não o fizessem, a água turbulenta do oceano estaria sempre a sua espera. Assim como sua vida era a ilha, sua vida agora seria a tempestade. Os livros, o guarda-sol e o penico, dançavam na areia carregados pelo vento, para longe. Se tornariam memória, guardados na mente até se dissolverem, vazarem os poros e evaporarem no ar, como ele, tornando-se neblina, nuvem e chuva, tempestade para lançar-se contra o jogo das ondas que sempre temera, para fundir-se com os demais e desaparecer entre os vapores do tempo, nos limites do oceano.