Por Luiz Renato de Souza Pinto*
O ano de 2017 tem se transformado em um momento de profunda expectação. Sempre fui a favor de grandes transformações; o problema é que agora elas têm acontecido à revelia do gosto popular, do bom senso e de uma verdadeira medida de justiça social. Não quero aqui comentar tantos disparates que temos visto acontecer nesse hipócrita regime bicameral em que estamos inseridos. Vou me deter apenas ao imbróglio da reforma do ensino médio. Mais especificamente com a preocupação com o ensino de literatura como pode vir a acontecer.
Penso o trabalho com livros de uma forma lúdica, embora travestido de reponsabilidade com a formação integral de leitores críticos para enfrentar a batalha diária da sobrevivência. Quero que meus alunos conheçam Machado de Assis, por exemplo, ao lado de grandes nomes de nossas letras. E o faço buscando sempre contextualizar com os tempos atuais. Se trabalho com o Apólogo, quero deles a compreensão sobre o papel da vaidade na formação do caráter de homens e mulheres. Se A Cantiga de Esponsais, que reflitamos sobre a condição feminina, os processos artísticos e a partitura social do casamento.
Com Adão e Eva, mais do que a gênese, a maçã, ou a serpente, interessa-me o cenário do Éden e a idealização formal que se nos apresenta no seio familiar e doutrinário. Com O Anel de Polícrates, as raízes gregas de uma invenção ocidentalizante. Com a Sereníssima República, gosto de desmoronar as bases de nossos três (podres) poderes. Como discutir as relações entre os “teres e haveres” que correspondem à dicotomia entre essência e aparência.
Não trato meus alunos adolescentes como fracos, ou incapazes de compreender os textos; até porque sabemos das várias camadas semânticas de qualquer gênero textual. Se eles podem saber o valor de X, balancear uma equação, ou coisa parecida, não há mistérios para o imaginário de autores, obras e processos narrativos. A Cartomante e A Missa do Galo complementam os aspectos (de) formadores de nossa escolaridade pequeno-burguesa no além-muros da escola.
Vejo meu trabalho como uma estratégia de sobrevivência de um apuro vocabular e estético. E assumo o desafio de enfrentar o senso comum. Como em um tabuleiro de xadrez, ordeno minhas 16 peças para enfrentar o inimigo real, embora nem tão visível; como o nariz metafísico de O Segredo do Bonzo. Trago como peões, alinhados na primeira fileira, Iracema, de José de Alencar, para discutir o estupro português à virgem dos lábios de mel, nosso querido Brasil. Ao seu lado, Senhora, também do mestre, para falar dos casamentos arranjados no século retrasado. Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, para demonstrar as trapalhadas ocorridas ao longo do governo de Dom João VI. O Ateneu, de Raul Pompéia, para que se repensem as questões que entravam as propostas de diversidade sexual no ambiente escolar.
Mais à esquerda, ainda na linha de frente, outros quatro peões defendem o patrimônio da cultura nacional, dentro do cânone. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, antecipando procedimentos modernistas na construção discursiva, O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, para que o instinto animal tenha voz própria na construção de discursos. Macunaíma e Memórias Sentimentais de João Miramar fechariam a peonada. O primeiro, de Mario de Andrade, por ser a síntese do reino animal, vegetal e mineral: ele é negro, branco e índio, pedra e planta. O segundo, de Oswald de Andrade, por revisitar Memórias Póstumas de Brás Cubas (o prefácio é assinado por Machado Penumbra).
Na retaguarda, usaria como as duas torres Uma Ponte para Terebin, de Letícia Wierzchowski e Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Letícia por trazer forte memorial de imigrantes europeus (sua descendência é polonesa) com esse mergulho em farta documentação que vem de seu avô; Carolina porque, diferente de Macunaíma, tem orgulho da raça e da condição de preta que era. As torres se movimentam em linhas retas apenas, mas podem encurtar distâncias.
Os cavalos, ginetes que saltam as casas e avançam belicamente, seriam O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo e Os Varões Assinalados, de Tabajara Ruas. Os sete volumes de Érico têm, a meu ver, vigor equivalente ao de Proust, com a diferença de que cada um busca o seu tempo perdido e o referencial de um é vanguardista ao passo que o de outro recria um mundo que justifique o espírito aventureiro de um inconsciente coletivo.
Mas o que apresento são apenas as minhas escolhas. Cada um movimenta suas peças em seu tabuleiro imaginário. A homilia fica por conta de quem articula o discurso, seja ortodoxo, ou heterodoxo. Para afirmar minha predileção traria dominando as diagonais, nos papéis de bispos, Boca do Inferno e Desmundo, de Ana Miranda. Gregório de Matos e os jesuítas são peças interessantes em nossa gênese arlequinal revisitada.
O casal central do tabuleiro estaria representado pela dupla Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa e A Paixão Segundo G.H, de Clarice Lispector. Os narradores de variantes linguísticas de Rosa e o olhar judeu da grande dama completariam meu tesouro imaterial. A força de uma língua pulsante e viva ao lado de enigmas críticos da mediocridade contemporânea a meu ver dão condição de se entabular boas discussões.
As obras poderiam ser outras, o jogo também. Qualquer obra pode servir de mediação para a busca pelo conhecimento. O olhar é que tem que ser treinado para extrair o trigo do joio, para que, aí sim, se possa amassar a massa, produzir o pão e reparti-lo por igual, ou pelo menos de acordo com a fome de cada um, afinal, “Deus dá o frio, conforme o cobertor”, já dizia uma velha canção que não toca mais na rádia….
*Luiz Renato de Souza Pinto, professor, ator, escritor e poeta.