Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Ana Miranda estreia em prosa com Boca do Inferno (1989), em que Gregório de Matos Guerra e Antonio Vieira surgem como personagens. Ambientada na cidade da Bahia, no século XVII, a narrativa se apresenta às voltas com o assassinato do alcaide-mor da cidade de Salvador. O lado satírico da poesia de Gregório alimenta a imaginação da escritora na criação do enredo e na experimentação linguística. Dois anos depois, em 1991, surge O Retrato do Rei. Este, tratando dos tempos áureos da mineração. A Guerra dos Emboabas é o ponto de partida para uma história de amor entre um rude paulista e uma jovem nobre portuguesa. Nesta narrativa estão presentes hábitos do período colonial e a transformação nos tempos imperiais: o Brasil do século XVIII.

Desmundo é de 1996. Mais uma vez remexendo na estrutura de seus romances, Ana Miranda constrói uma narrativa que se quer híbrida pela semelhança com textos dos cronistas do século XVI, mesclados com a tensão do romance tradicional. As epígrafes de Fernando Pessoa e de Pe. Manuel da Nóbrega norteiam o discurso em primeira pessoa de Oribela, uma órfã que vem ao Brasil para se casar com um cristão português. As muitas vozes do novo mundo se manifestam pelo seu olhar.

Em Amrik (1997), Amina é quem nos conta sua história e como pano de fundo temos o processo de imigração libanesa para a cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX, cenário para mais uma história de amor. E outra vez o olhar feminino vai à cata de espaço para reescrever uma história até então silenciada

A ambiguidade proveniente dos discursos que constituem tais narrativas é que traz a possibilidade de novas leituras, questionadoras da ideia de verdade, o que força uma ressignificação no presente através de uma nova configuração discursiva.

Dias e Dias, de 2002, é narrado por Feliciana, que nos conta a expectativa de reencontrar o seu amor: o poeta Gonçalves Dias. A ambientação histórica na cidade de Caxias, no Maranhão, como, também, o sofrimento de um amor encarcerado por quase trinta anos no coração, fizeram da narradora uma mulher acostumada a grandes ausências. A voz feminina nos romances de Ana Miranda configura um lugar social sofrido na história cultural brasileira.

Oribela, em Desmundo, Amina, de Amrik, o Inominado, de A Última Quimera, e Feliciana, de Dias e Dias, são protagonistas que trazem do passado outra visão das coisas, do mundo. Os excluídos ganham voz nos estudos pós-coloniais e abrem um leque de possibilidades de leitura para o passado próximo e o distante. Em Desmundo, por exemplo, um olhar atento aos paratextos da obra é suficiente para nos revelar informações interessantes acerca do processo criativo da escrita. Oribela percorre os cenários, movimentando-se por entre o século XVI. Seu olhar transforma em galerias todo o passado colonial brasileiro. Na primeira orelha do livro, por exemplo, destacamos o fragmento em que, ao comentar sobre Oribela, o editor afirma (MIRANDA, 1996, s/p):

Suas “palabras pronunciadas com el corazón caliente” formam um suntuoso relato arrancado das partes mais inconscientes, mais misteriosas, de um ser que atravessou não apenas o oceano Atlântico, mas a linha imaginária que separa a realidade e o sonho, a liberdade e a escravidão, o amor e o ódio, a virtude e o pecado, o corpo e o espírito.

Sabemos que há uma crise da linguagem e que esta também se processa no fazer historiográfico, Se pensarmos em Platão como o criador de uma cidade e estado ideal, observamos que seu pensamento estará na base da filosofia idealista que acometerá a Europa, a partir da Alemanha, ao longo do romantismo europeu. A forma dialogada utilizada para fins de reflexão faz com que brotem de sua narração cenas de vivacidade, cromatismo e encanto. É com relação aos mitos que sua obra ganha contornos que aproximam os textos da liberdade criativa do texto ficcional.

O pensamento histórico tem se (re)aproximado do ficcional por intermédio de um novo ordenamento social, de práticas que vêm modulando o convívio de maneira a homogeneizar a produção cultural, indícios que já se observavam ao longo das primeiras décadas do século XX, sobretudo com o advento do cinema, depois do rádio, televisão e hoje com as novas tecnologias de comunicação, internet, intranet, celulares etc.

Ana Miranda – Divulgação

Ana Miranda, com sua escrita ficcional, busca ressignificar aspectos da formação cultural da brasilidade desafiando o cânone da historiografia e da historiografia literária ao trazer à tona outras verdades do contexto nacional. O curso de extensão será dividido em módulos que terão uma sequência didática definida a partir de uma (re) construção histórica que permita a discussão em torno de outro olhar sobre a historiografia oficial brasileira. Como ponto de partida estabelecemos a chegada dos portugueses ao novo continente, seguida pelo período inicial da colonização, passando pelos períodos imperial e republicano.

Os encontros presenciais ocorrerão em dois turnos, sendo uma turma matutina e outra vespertina. O matutino com encontros às segundas e sextas-feiras; o vespertinos às terças e quintas. Iniciaremos as turmas na semana de 23 a 27 de outubro e encerramos entre 06 e 09 de fevereiro.

A expectativa é de que ao final os envolvidos tenham uma leitura diferenciada de fontes primárias para a compreensão de outros contextos e épocas. Os textos literários, de base ficcional, ou não, podem e devem ser utilizados como elementos capazes de fornecer informações interessantes acerca de determinados períodos. É preciso compreender que o historiador trabalha com fontes e escolhe as que mais se encaixam em seu roteiro de apreensão significativa, o que impacta em outra subjetividade. Desde a o acontecimento da Escola Nova que não há mais espaço para uma história totalizante, que se escora somente em aspectos econômicos e quantitativos.

Maiores informações podem ser obtidas pelo e mail lrenatopinto@bol.com.br, ou pelo fone 65 9 99749293 (whats).

REFERÊNCIAS

MIRANDA, Ana. Amrik. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

____________. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

____________. Boca do Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

____________. Desmundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

____________. Dias e Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

____________. Musa praguejadora. Rio de Janeiro: Record, 2014.

____________. O Retrato do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

____________. Semíramis. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

____________. Yuxin. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

____________. Xica da Silva. A cinderela negra. Rio de Janeiro: Record, 2016.

 

*Luiz Renato de Souza Pinto é professor, escritor, poeta e ator.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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