O que me chocou não foram os pênis, as vaginas, vulvas, clítoris, seios, os corpos nus. O que me chocou foi vivenciar as lacunas profundas que separam a sociedade brasileira. No Museu de Arte de São Paulo (MASP), a exposição sobre as Histórias da Sexualidade, com obras de artistas de todo o mundo, que provocam, chocam, e nos tiram do nosso cômodo lugar para refletir e questionar esses padrões estabelecidos que autoritariamente nos dizem o que é certo ou errado, não chega naqueles que podem transformar o futuro: os jovens. Essa censura dos 18 anos diz tudo sobre o atual momento do país.

Obra do artista de MT Adir Sodré exposta no MASP em Histórias da Sexualidade. “É muito delicada, bem realizada, está longe de ser pornográfica. Lirismo erótico santo”, disse Adir sobre seu quadro “Roberta Close”.

Exposições são canceladas, performances censuradas, peças de teatro suspensas. E em todas, o corpo é o alvo. Qual o papel político e educacional de um museu quando restringe o acesso aos jovens? Como rompemos com esse ciclo vicioso, esse tabu, de que não podemos tocar nossos próprios corpos, falar, debater, perguntar, sequer escutar, se não permitimos que os jovens participem?

Criam-se monstros imaginários que apelam para os medos em comum de parcela da sociedade conservadora. Esses monstros imaginários são alimentados com ódio e desinformação. Aproveitam dessas estratégias para criar um véu de censura que oculta o que realmente importa: as decisões políticas, as mudanças em leis que legitimam seus discursos e possibilitam a continuidade desse consciente coletivo do medo.

E o golpe vem em cheio na direção da arte por que é ali onde historicamente nasce a resistência, o contraponto, principalmente em momentos de exceção, ditatoriais e autoritários.

O clima medieval, que vem predominando em todo o Brasil, alastrou-se essa semana pelas ruas de São Paulo, em uma verdadeira “caça às bruxas” promovida através das redes sociais que reuniu protestantes contra a filósofa estadunidense Judith Butler, acusada de criar a “ideologia de gênero”. A censura tenta chegar à educação, ao pensamento.

Infelizmente, a semana não termina com mais essa fogueira acesa pelo conservadorismo, pelo contrário, é alimentada com a tentativa de queimar os direitos conquistados pelas mulheres.

Agência EBC

Em mais uma manobra descabida e ilegal, uma comissão especial formada em sua maioria pela bancada evangélica na Câmara alterou o teor de duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 181 e 58, para passar uma modificação na Constituição Federal que abre precedente para que os abortos previstos em lei sejam também proibidos. Com a mudança, a redação passa a ser: “O inciso III do artigo 1º da Constituição Federal incluirá entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito a “dignidade da pessoa humana, desde a concepção”. E artigo 5º passará a afirmar que todos são iguais perante a lei “desde a concepção”‘, conforme a matéria do EL PAÍS no link acima.

Atualmente, a legislação permite abortos nos casos de risco de vida para a gestante, estupro, e fetos anencéfalos. O texto original da PEC 181 aumentava o período de licença maternidade nos casos de nascimentos prematuros. E assim os homens aproveitam essa cortina de fumaça para sorrateiramente sequestrar direitos e continuar a decidir sobre outros corpos, que não os seus.

Este é o momento de resistir, através dos corpos e da arte. Precisamos preencher essas lacunas com compreensão, compartilhamento, afeto. Só assim iremos reconstruir nossas possibilidades de se pensar em um futuro.

O papel dos artistas no enfrentamento à perpetuação e manutenção deste status quo é apresentado no intrigante filme Manifesto! estrelado por Cate Blanchet. O filme é o que o nome promete. Um extenso manifesto sobre a decadência do mundo e do sistema capitalista e o preponderante papel revolucionário da arte para impactar, transformar, modificar e suavizar, as realidades violentas apresentadas pelo homem na história.

“A arte exige verdade, não sinceridade”.

Comentário

  1. Genial a sua matéria Mariana. Parabéns! Com uma narrativa enxuta e vigorosa vc apresenta de forma contundente essa tentativa orquestrada de sequestro da liberdade de expressão que é a natureza própria da Arte. Ainda ontem vi uma declaração do Caetano Veloso alertando que são grupos organizados e pagos por aqueles que buscam galgar o poder nas próximas eleições. Então, o que parece ser uma resposta indignada de certos setores da população não passa de uma jogada de marketing de plataformas polítiicas que servem a esses interesses. Que horror!

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here