Nessa manhã de sólida solidão, revejo meus passos, redesenho percursos na cabeçagenda. Manhãs de Jorge limpam os olhos ao ver o título na prateleira da mini biblioteca. Repousa entre clássicos, bons e eleitos, raros e bem feitos, livros que acumulamos ao longo da vida. A extensão da cabeceira. Não há tempo para novidades. Só para as raras brevidades literárias que atingem o esplendor da linguagem. Não há tempo para sobras.
Pois é. Assim caminham as coisas nas cabeças de alguns como Carlos Heitor Cony em inútil receita de leitor escritor. Escritores novos proliferam. Não me convide! Não me perturbe! Não tenho tempo de ler coisas novas.
A comungar disso, os novos estão ferrados. Ops, mas isso é receita do Cony. Nego isso agora e vos digo que receita boa, é desse menino Mário Rodrigues. Receita boa é bom livro. É livro bem escrito. É livro que prende a respiração de acordo com seu jogo de temporalidades. Narrativa bruta, como um assovio, como a boca de um menestrel. Bradai poetas. De uma tacada só, Jorge e Mário, li dois bons livros. Dois jovens autores. E não é que, logo em suas estreias foram finalistas do Prêmio Jabuti?! Esse sim é prêmio de excelência. Sempre premiam bons livros. Mas cabeça de avaliador é igual de aviador, voa nas circunstâncias do percurso. Das emoções, dos problemas emocionais. Do saco cheio ou não, enfim. Turbulências.
Mário já é uma voz só que narra, o mesmo cara. Eu narrativo com voz de criança, voz de adolescente, em fase de crescimento, experimentando as delícias da maldade. É incrível como gerou uma identificação imediata. Coisas de raízes nordestinas. Lembrei-me da criançada cheia de pequenas maldades, desafiando a visão imposta da criança boazinha. Muitas aprontam sem parar, fingem inocência, ou será a maldade parte da inocência?
Jorge são muitas vozes, todas marginais, invade corpos que circulam nas margens da sociedade, assume identidades diversas, de crimes comuns, traição, frustrações, tudo em queda, tudo extraído das páginas da vida tão banais como as notícias policiais, como se fosse ele próprio a experimentar a vida, ele se trans-figura. Não há salvação. Os caminhos parecem fatidicamente traçados, trançados, de braços dados com a tragédia prenunciada. As frases curtas. A respiração entrecortada. A vida editada em um ritmo calculado, leva-nos caudalosamente para os desfechos prenunciados assim como a falta de perspectiva que conduz todos ao mesmo fim. No jogo das narrativas ou dos narradores o escritor assume identidades questionando o próprio ofício, pode-se ser ou fazer de tudo, mas ser escritor é o fim. É a falta de futuro, tudo pode, menos isso. Refletindo a própria condição no mesmo rol de crimes e criminosos. Ser escritor é suicídio, é a morte lenta e solitária do ser que se torna vítima e algoz ao criar personagens que vivem na beira do abismo, no limite da sanidade.
Escrevo essas linhas sem nenhuma pretensão de analisar os livros de Jorge e de Mário com viés crítico ou acadêmico. Esse tipo de literatura corre pelas beiras. Expõe a vida e suas falhas insanáveis no sistema de coisas que arrasta a todos. No out.
Esses livros estão acima da média. Comento como leitor, como quem usufrui do prazer de conhecer outras perspectivas, histórias de vida que estão aí. O olhar do escritor captura instantes de tensão e poesia.