Por Thereza Helena*
Cadeia produtiva do Festival Velha Joana em Primavera do Leste. Ou o teatro que se faz de geração para geração na construção da nova capital do teatro mato-grossense
Não é todo dia que se encontra por aí uma galera tão jovem, ousada e comprometida com o ofício teatral como a que realiza o Festival Velha Joana em de Primavera do Leste. Contando este ano a sua 11ª edição, o evento é uma grande ação de democratização aos bens culturais e sempre cura espetáculos para os mais diversos espaços que a cidade tem como pistas de caminhada, escolas, feiras, terrenos baldios. O que vejo são mais que atores, encenadores, produtores reinventando o fazer artístico e descobrindo nos espaços alternativos as potências que eles têm. Na falta de uma grande sala para apresentações, a piscina se torna palco e vemos teatro até embaixo d´água! Não satisfeitos com o desafio, erguem-se guindaste acima, com todos os aparatos de segurança, é claro, e mostram que pra eles nem o céu é o limite. O que vejo é uma cidade inteira mobilizada numa verdadeira cadeia criativa e colaborativa disparada pelo grupo Faces que geração a geração vem construindo a capital mato-grossense do teatro.
É indiscutível que um fenômeno assim não acontece da noite pro dia. Só do que sei já são mais de 10 anos que Wanderson Lana e sua trupe com apoio do aparelho municipal, estão produzindo e circulando espetáculos, promovendo intercâmbios municipais, estaduais e internacionais, investindo em estratégias de alcance e repercussão que alcem a produção artística cada vez mais longe, tudo por acreditar no potencial transformador que a arte tem.
Neste ano de 2017, por exemplo, com o convite para que o Parágrafo Cerrado acompanhasse a programação, além de apostar no desenvolvimento dos artistas locais, o festival fomentou também a cadeia produtiva de arte, incentivando a manutenção da 1ª plataforma colaborativa para produção de leitura de cenas do estado. Através de uma dessas leituras, eu soube que uma plateia inteira ligou as lanternas dos celulares para iluminar os atores, tudo para que o espetáculo continuasse. Nessa hora tive a (re)confirmação de que a arte conecta e transforma. Entretanto, além de empenho pessoal, o investimento público é fator determinante para manutenção de uma ação grandiosa assim. Nesse sentido ver o aparelho público municipal apoiando ano a ano esse evento com certeza é um exemplo a ser copiado urgentemente por outras esferas administrativas sejam elas públicas ou privadas.
Neste ano foram quase 10 dias de programação ininterrupta (de 4 a 12 de novembro), organizadas em 3 mostras distintas: Panorama, Regional e Oficial, voltadas à recepção de inscrição de espetáculos locais, regionais e nacionais respectivamente. Nesta edição o festival recebeu apresentações vindas de Santa Catarina, Bahia, Brasília, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, além de Mato Grosso, totalizando mais de 40 espetáculos. Isso não é pra qualquer um. Sei de tudo isso porque tive a grata satisfação de, além de acompanhar a programação com o Parágrafo Cerrado, apresentar meu espetáculo.
Lá fomos nós: eu e mais 10 paragrafadores pelo Parágrafo Cerrado e a equipe de INhamor, composta por meu irmão e minha mãe, além de mim. Enquanto Parágrafo, fomos de mala e cuia para ficar os 10 dias de programação. Como Inhamor enchemos a mala dos ingredientes necessários para partilhar com as primaverenses os aromas e sabores da nossa cozinha cênico sensorial. O frio na barriga que sempre bate antes de embarcar pra viagem nem teve tempo de se instalar. Antes mesmo da nossa partida já estávamos nos sentindo em casa, tamanha a acolhida com a qual a família Faces recebeu a minha.
Até a montagem técnica, simples mas laboriosa, passou num estalar de dedos, já que pudemos contar com muitas mãos para a realização do trabalho. Kiko, Thairo e Jeisy, cujos trabalhos de atuação conheci em “Romeu e Julieta para desavisados”, espetáculo que logo de cara me ganhou pela autointitulação “teatro performativo decolonial feminista”, arregaçaram as mangas e colocaram a mão na massa junto com a gente, montando luz e palco, levando e buscando equipe, numa verdadeira demonstração de que o time é bom dentro e fora de cena.
Depois dessa experiência, toda vez que me der vontade de debater a respeito da importância do trabalho colaborativo e o poder da consciência de classe, coisa que sempre me dá, vou poupar saliva e em vez de discursar pra quem não quer ouvir, indicarei uma temporada no próximo Festival Velha Joana, porque lá, no que diz respeito à criação e ao trabalho coletivo, não há força que não faça mover e voz que não se faça ouvir. O que acontece em Primavera do Leste é um grande milagre. Só não vê quem não quer.
*Thereza Helena é mestranda em Estudos de Cultura Contemporânea, atriz, performer e diretora. Membro fundador e idealizador do Parágrafo Cerrado- 1ª plataforma colaborativa mato-grossense para produção de leituras de cena; Membro fundador e idealizador da ocupação artística independente “O levante em Cena” e integrante articuladora da rede “Mais Mina- catalizadora feminina”, escreve para o Parágrafo a partir da programação do XI Festival Velha Joana em Primavera do Leste de 04 a 12 de novembro de 2017.