Um cinamomo centenário, já morto, morria a morosa morte das árvores e ia sendo engolfado por uma jovem e garrida figueira-vermelha. As duas espécies pareciam abraçadas em solidariedade, mas o que realmente acontecia era que a figueira estava estrangulando o cinamomo em câmera lenta enquanto outras plantas parasitas, fungos e insetos proliferavam em seus caules e raízes, alheios à violência (GALERA, 2016, p. 201).
MEIA NOITE E VINTE. As horas vão passando, o tempo escorre da ampulheta e o número de livros para ler a minha frente só aumenta. De vez em quando um ou outro fura a fila por alguma demanda que insiste em se fazer presente. Mas há hora para tudo. Leio, estudo, depois vou para a galera a fim de dar o retorno do meu prazer e entendimento. Recentemente faleceu nosso grande escritor e resenhista Carlos Heitor Cony. Comentei por aqui em outra crônica que o mestre dizia preferir reler os clássicos a passar os olhos pelo livro de algum jovem escritor. Sabia que dessa forma corria o risco de perder uma boa leitura, mas com o cânone o tiro era certeiro.
Daniel Galera já é um clássico, às vésperas de completar seus quarenta anos de idade. Autor de várias obras que nos colocam defronte a temáticas desse início de século, com as complicações de um automatismo psíquico tributário do impacto das novas tecnologias sobre os indivíduos, o paulista de ascendência gaúcha e que hoje mora novamente em Porto Alegre traz em Meia Noite e Vinte um thriller de suspense na era dos black blocs, governo Dilma Roussef, explosão de ira em tempos de crise. Mais que uma escrita bombástica, o livro retrata com velocidade e pragmatismo o cenário urbano da capital gaúcha em meio ao caos dessa (pós) modernidade (ainda que tardia) que reflete a concentração de poder e renda onde havia um crescimento de democratização de renda por um decênio.
Uma bióloga, um publicitário e um jornalista se reencontram para celebrar a ausência significativa de um quarto elemento do coletivo, falecido de maneira misteriosa nas ruas de Porto Alegre. Aurora está em crise para a qualificação de doutorado na Universidade de São Paulo; já foi reprovada uma vez e está por um fio. Emiliano, em monólogo interior reflete sobre a baixa frequência ao enterro do amigo Duque: “A garota mencionou a greve dos ônibus como possível motivo para ausência de fãs na entrada do cemitério e me mostrou os livros que tinha em mãos, autografados pelo Andrei” (Galera, 2016, p. 40). Isso me lembrou um pouco Brás Cubas refletindo sobre o público diminuto em seu enterro. Antero, na ausência da mulher, expunha seus pensamentos mais íntimos, agora revisitado pela ausência definitiva do amigo: “ Todo palerma que já havia escrito um romance ou dirigido um filme gostava de dizer que a arte não podia prescindir de honestidade, que a mentira e a simulação apenas serviam a uma sinceridade interior” (idem, p. 112).
O romance acontece ao longo do ano de 2014, em que o Brasil foi derrotado pela Alemanha por aqueles 7 X 1; e cá estamos nós às voltas com nova copa do mundo. Aguardo ansiosamente para ler o livro de Mário Rodrigues, A cobrança, para saber o resultado desse outro jogo. Aurora confessa ao leitor um pouco do seu cotidiano familiar, agora interrompido pelo doutorado na capital paulista: “Era mais fácil falar de sexo à mesa com meus pais que de política” (idem, p. 131).
Emiliano, convidado por um editor para escrever a biografia do morto vai desvendando aos poucos, aos olhos do leitor, suas descobertas. Intuitivamente desconfia que Francine, companheira de Andrei, o Duque, deveria ter em mãos segredos do agora ausente. “De tempos em tempos ele atualizava o testamento informal contido no envelope. Foram quatro atualizações no total. Em média uma por ano” (p. 157).
Os livros do falecido ajudam Emiliano a resolver alguns mistérios para produzir a biografia. “As lombadas de todos aqueles livros poderiam muito bem contar uma história” (p. 160). Nascido em Porto Alegre, em doze de janeiro de 1978, Andrei Dukelsky, “sexo masculino, solteiro, nível intermediário”, (p. 183-4) vai se construindo à nossa imagem e semelhança neste livro antenado com os tempos de hoje.
O tempo passa, a ampulheta devolve à lei da gravidade cada grão de areia e de montículo em montículo, vai se formando um cenário árido no calor gaúcho de um verão massacrante. Após o enterro, a noite vai engolindo as memórias do triunvirato. Nas palavras de Antero, “Foi Andrei quem anunciou, de repente, para a surpresa dos outros, que já era meia-noite e vinte” (p. 199). Qualquer hora é hora para uma boa leitura!
REFERÊNCIAS
GALERA, Daniel. Meia Noite e Vinte. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.