Por Antonio Torres Montenegro*
Na década de 1970 estudos sobre o poder passaram a propor que este fosse pensado como relação. O poder não deveria ser visto como localizado no sujeito, numa classe social, no estado, em políticos ou empresários. O poder se exerce, uma prática instituída e instituinte de múltiplas relações. Uma das relações constitutivas desse fazer é a relação poder e saber. Toda forma de conhecimento é indissociável de múltiplas relações de poder.
Alguns relatos talvez possibilitem ampliar a reflexão do “poder como relação” e sua indissociabilidade do saber. Inicio pelo documentário do centenário do nascimento, em Recife, do cientista Frederico Simões Barbosa, um dos pioneiros da epidemiologia da esquistossomose no Brasil, dirigido por Silvia Santos. Nele, Frederico Simões Barbosa narra a luta para convencer seus pares da ineficácia do uso de moluscicidas no combate a esquistossomose: “Foi uma luta política minha de talvez uns 30 anos. Isso mostra a lentidão de mudar o pensamento científico de qualquer maneira quando ele está impregnado pelas forças produtivas e interesses econômicos.”
O físico Werner Heisenberg narra em seu livro “A Parte e o Todo” os debates sobre a teoria quântica no Congresso Solvay, 1927, em que Einstein não aceitava o caráter estatístico da nova teoria e se recusou a aceitar o princípio da incerteza. Depois de intensos debates, o físico Paul Ehrenfest, amigo de Einstein, disse-lhe: “Einstein, estou envergonhado; você está contestando a nova teoria quântica exatamente como seus adversários contestam a teoria da relatividade.” Sobre esse momento, Heisenberg escreveu: “Mais uma vez compreendi como é difícil alguém abrir mão de uma atitude em que se basearam toda a sua abordagem e toda a sua carreira científica.”
Arnaldo Rodrigues ao relatar em 1987 suas memórias sobre a luta da terra no bairro de Casa Amarela, em Recife, afirma que o movimento “Terras de Ninguém”, na década de 1970, enfrentou a família proprietária da imobiliária que se dizia dona de Casa Amarela. “Ficaram dono de tudo, mas não é dono de nada. E, hoje em dia ninguém pode dizer que ele não é dono, porque ele tá com a lei, ele passou tudo em lei, ele é sabido que é danado, tem cartório, a família toda estudou, formou-se, tem juiz, tem advogado, tem tudo, fez tudo na boa”.
Acredito que essas três histórias em distintos tempos e espaços possibilitam refletir acerca das múltiplas formas como a relação poder e saber constituem e reproduzem relações de força e dominação.
Antonio T. Montenegro, professor titular do dep. de História da UFPE. Publicado no JC em 20/03/2018.