Durante algum tempo ministrei a disciplina de Literatura Infanto-juvenil em cursos de graduação em Letras, especialização e até mesmo de Pedagogia (EAD). Como o tempo de cada uma é diminuto, achei por bem escolher duas obras que considero significativas, uma de cada período determinante da produção do gênero em território nacional. Do primeiro momento escolhi “Emília no país da Gramática”, de Monteiro Lobato, espécie de metalinguagem crítica do ensino de língua e literatura brasileira/portuguesa e suas derivações.

Mas para tratarmos desse assunto de maneira adequada, não há como nos furtarmos a um aprofundamento no que veio a se configurar como verdadeiro “boom” do gênero, ao longo dos anos de 1980. E como escolher uma obra apenas desse período de escritores geniais como Ruth Rocha, Silvia Orthof, Bartolomeu de Queirós e tantos outros? Diante dessa tarefa hercúlea, escolhi uma que acabara de ser premiada recebendo o selo de altamente qualificada e que descobri em uma biblioteca pública, toda exibida do selinho de qualidade a que me referi. “A Bolsa Amarela” foi meu primeiro contato com a obra de Lygia. Depois fui apresentado ao “Tchau” e “A casa da madrinha”, esta só de ouvir falar, apenas folheei distraidamente.

Muitos anos depois, em viagem ao Rio de Janeiro tive a oportunidade de conhecer a casa onde habitam esses seres fantásticos que são os personagens da Lygia. E para ciceronear o passeio Ninfa Parreiras foi nos conduzindo pelos cômodos das três casas, o itinerário poético da fazedora de sonhos. E agora, ao continuar a leitura de suas obras, tudo parece fazer um novo sentido. E eu me vejo na pele do Lourenço desfrutando daquela paisagem à distância, como saída de um sonho em que o desenho da menina do lado tivesse atingido em cheio.

Quando digo que a culpa é de Ninfa é pelo fato de que seu conselho para percorrer a obra de Lygia fosse começar pelo “Intramuros”, depois seguindo pela trilogia que fala sobre livros/personagens/espaços; e assim obtive das mãos de Juliana os quatro exemplares que trouxe para morar aqui em casa dando a eles lugar de destaque em uma das minhas estantes; a que fica mais próxima de mim, ao lado da cama, cercada de gente boa que descansa cada qual em seu quadrado, repousando em espécies de caixinhas (de surpresas).

A escrita de Lygia é um bate papo com o leitor, e isso não é privilégio do Lourenço, pois a escrita ágil e conversadeira que sai da boca de seus personagens vem (paronomasticamente) povoando nosso imaginário de aspectos lúdicos que dão vida a locais e pessoas. É assim com o Gari e seu neto GARIbalde (a quem o avô carinhoso ensina navegação com um barquinho achado no lixo); e para ficar só nesse par de afetos transformados em pessoas, pois seus personagens ressoam aqui dentro, saltando dos livros diretos para uma conversa com a gente. “E esse é ainda um outro aspecto maravilhoso do livro: ele guarda, ele segura o que a gente é quando transa com ele” (BOJUNGA, 2007, p. 49).

Sou como Lygia; quando mudo, pouco me preocupa o transporte do sofá, das panelas, da televisão. Meu cuidado vai para os livros, essa sim, minha preciosidade. Estou aqui falando como se já a conhecesse pessoalmente. Mas eu a conheço, apenas ainda não fomos apresentados. Ela se desnuda diante da escrita e somos capazes de enxergá-la, ainda mais com a ajuda da Ninfa – apresentadora de seu universo íntimo para os leitores apaixonados pela leitura, pela escrita, pelo universo da artista que põe vida em tudo o que toca, no que sente, sonha, enxerga e ainda vê!

De Ana Paz fico com a imagem da velha, da moça, da mulher. De um pai (que a exemplo do João) se vê esfumaçado na construção do livro (Interdito). A lembrança mais forte parece a da sacola esquecida com as roupas para a fuga nos anos de chumbo (equivalente à bolsa amarela). E a carranca a perseguir o curso da vida. A mesma das barcaças do São Francisco que apareciam lá em casa, quando menino, nos programas do Amaral Neto repórter. Muitos antes de vir a conhecer Petrolina, Juazeiro, pedacinho sagrado desse nosso Brasil.

Esse conjunto imagístico de paisagens nos tele transporta para dentro de qualquer lugar. Sou nascido em Maringá, Paraná, mas conheço Lourenço das páginas da Lygia Bojunga que dialoga com as interfaces artísticas profundas para a construção de suas histórias. Pouco importa a veracidade do discurso da menina do lado, da capacidade inventiva de Lourenço, da existência de Renata. O que importa é que já habitam em mim. E sabe por quê?

Ela falou que queria ter nascido desenho e não letra; disse que só preto e branco fazia ela triste: ela queria ter cor. Eu então peguei a minha aquarela e fiz ela toda assim colorida, cada letra eu fui virando num pedacinho de desenho, e quando era uma palavra o desenho ficava assim grande, e quando era uma frase toda o desenho ainda ficava maior (BOJUNGA, 2007).

Lygia constrói pontes com seu saber e conhecimento. Mas é dentro de suas muralhas que a vida ganha sentido. Intransponível é apenas aquilo que não conseguimos imaginar: culpa da Ninfa!

REFERÊNCIAS

NUNES, Lygia Bojunga. Intramuros. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2016.

____________________. Livro – um encontro. 6 ed. Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga, 2007.

____________________. Fazendo Ana Paz. 6 ed. Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga, 2007a.

____________________. Paisagem. 6 ed. Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga, 2004..

 

 

 

 

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here