Conversávamos em uma mesa de bar quando Gabriela de Matos, mulher, negra e arquiteta, compartilhou com entusiasmo e emoção a ideia do projeto Arquitetas Negras. Já havia algum tempo que a movimentação nas redes sociais demonstravam o potencial da iniciativa. Mulheres de todo o Brasil conectando-se através de suas histórias de vida, com a profissão como ponto de encontro daquilo que vivenciam na pele todos os dias: serem mulheres e negras em um país estruturalmente racista e machista. O maior desafio é romper com essas estruturas e colocar em visibilidade o movimento desta mudança que está em plena marcha, e não retrocederá. Nesta entrevista, Gabriela explica mais sobre o projeto da revista e o financiamento coletivo para transformá-la em realidade. A união é a forma de potencializar as vozes de todas essas mulheres. Por isso, é com muita honra que convido vocês a conhecerem mais um canal de resistência:
Como surgiu a ideia do Projeto Arquitetas Negras?
A ideia do projeto surgiu a alguns anos atrás através de uma inquietação pessoal minha. Eu constantemente me questionava porque eu era a única arquiteta e urbanista negra em situações que envolviam o universo da arquitetura e do urbanismo. Na graduação este fato me incomodou bastante porque além de eu ser a única aluna negra na minha sala, eu também não tinha professoras ou professores negros e a arquitetura afro-brasileira, africana ou diaspórica, sequer era citada no meio acadêmico em que frequentei. Essa situação também ocorreu quando eu me especializei alguns anos depois.
Como foi feita a articulação para o projeto?
A primeira articulação foi feita quando lancei um formulário na internet pedindo para que as arquitetas brasileiras preenchessem, para que a partir disso eu conseguisse observar aonde estavam as arquitetas negras brasileiras e o que elas estavam produzindo. Essa foi a primeira articulação deste projeto. Essa primeira conexão que fez com que nós nos encontrássemos e nos conectássemos. Mas eu considero que a articulação é feita constantemente. Constantemente novas conexões são feitas e por isso a articulação vai crescendo e tomando novos lugares e novas formas. Estas formas acontecem em forma de ações que estamos propondo para promover o debate de raça e gênero no campo de conhecimento da arquitetura e do urbanismo. A revista é a segunda ação do projeto.
Qual o objetivo com a criação de uma revista especializada?
Após o mapeamento, ficou óbvio que as arquitetas negras brasileiras estão com suas produções a todo vapor porém não encontram meio de escoá-las. Seja em publicações, seja em mostras ou em veículos potentes de mídia. A ideia da revista surgiu como um meio de dar visibilidade para essa produção. Abrimos um edital convocando as arquitetas negras brasileiras para enviarem seus trabalhos pois desta forma acreditamos que a revista será construída de forma democrática. No momento estamos concluindo a curadoria deste material.
Sobre o financiamento coletivo para a revista, como funciona?E quais são as metas estipuladas?
O financiamento coletivo é do tipo tudo-ou-nada. Nós possuímos uma meta e precisamos alcançá-la para conseguir financiar o lançamento da revista. Caso a meta não seja alcançada, os valores das contribuições são devolvidos para os colaborares. Estamos a 10 dias do final da campanha de financiamento e até agora temos 76% da meta alcançada. (Atualização: o financiamento alcançou 94% faltando 6 dias para o encerramento).
Através do projeto você conseguiu se articular com muitas outras mulheres negras
arquitetas, qual a importância desta união entre as profissionais?
A minha maior alegria com esse projeto é que eu não me sinto só mais. E é extremamente gratificante escutar a mesma coisa de outras arquitetas negras. Este primeiro passo foi dado. Nos conhecemos! Nos reconhecemos! Compartilhamos nossas experiências, anseios e agora estamos nos articulando para exigir atenção às questões de gênero e raça na arquitetura. Nossa profissão é elitista, machista e majoritariamente composta de pessoas brancas. Precisamos que todas as pessoas se engajem nessa luta com a gente. Afinal de contas viver em uma sociedade mais igualitária e justa, é bom pra todo mundo.
Como você enxerga este encontro que se potencializa através das plataformas
digitais?
Acho maravilhoso! Desde o princípio as plataformas digitais eram minha principal ferramenta. Foi através delas que eu me conectei com a minha principal colaboradora, que é a arquiteta e urbanista Barbara Oliveira de Recife. Ela apoia o projeto desde o principio mesmo estando em Pernambuco e eu em Minas Gerais. Fora todas as outras arquitetas negras de aproximadamente 20 estados do Brasil, que agora também estão conectadas nesta rede. Com certeza devemos isso às plataformas digitais.
Quais são os próximos passos?
Alcançando a meta do financiamento coletivo, iremos focar na produção da revista, que será a primeira revista exclusivamente produzida por arquitetas negras brasileiras. Temos ideias para o futuro mas primeiro estamos focando em fazer uma revista potente porque ela por si só já é um marco na história da arquitetura e do urbanismo brasileiro, pois dá voz pra uma parcela de profissionais que nunca tiveram voz antes.
Para continuarmos a reflexão e debate sobre as questões de gênero e raça na sociedade brasileira, me reservei o direito de copiar um trecho da postagem da Gabriela em suas redes sociais, no Dia da Consciência Negra (20/11):
“(…) É nessa data que eu começo a refletir o que eu tenho feito a respeito da minha tomada de consciência como pessoa negra em um país estruturalmente racista. Qual é a minha contribuição para a mudança dessa estrutura?
Aí eu refleti que nesse último ano eu consegui um feito que estava entre meus planos há anos! Que é juntar minha pesquisa pessoal de assuntos relacionados a negritude com a minha vivência profissional enquanto arquiteta e urbanista. E NEGRA.
Nessa foto eu estou ao lado de outras arquitetas negras que consegui me conectar devido ao projeto Arquitetas Negras e seus desdobramentos, em um espaço que eu considero aliado que é a Casa Vogue Brasil, discutindo assuntos relacionados à nossa experiência técnica e profissional, e nossas observações acerca do desenvolvimento urbano das cidades brasileiras.
O racismo no Brasil é estrutural, as vezes subjetivo, as vezes direto e doloroso demais. É necessário muito mais que um dia, são necessárias muitas vozes, muitas mãos brancas e negras juntas, lutando pelo fim dele. Aí eu decidi fazer essa reflexão e essa chamada.
E aí? Vamos juntas e juntos nessa luta?”