O nome dela é Machamba. Irmã de Joana. Seu tempo era antes e também depois; nasceu com asas e não tinha pouso seguro. Nenhum. Não era dele, nem de ninguém. “Ele dormiu um sono sem sonhos, debaixo da mangueira, dentro da sua pele proibida de se misturar com a dela, desde quando os avós de seus avós foram trazidos da África para um grotão de terra em Minas Gerais. No dia do Antes havia uma fita vermelha, uma menina sem roupa e os olhos de um pai” (MIRABAI, 2017, p. 10). O dia do Antes. O do Depois.

Seu pai não a queria de amassos com o menino simpático, agradável, que podia tudo, menos se deitar debaixo da mangueira, ou mesmo se engraçar com a sua filha. Depois de perdido o elo, Machamba seguiu seus próprios trilhos, deixando para trás o trem, a mangueira com a fita pendurada. Poderia passar a palavra a ela, mas tenho a ambição de eu mesmo escorrer a prosa, pois “Tudo o que respira conta a mesma história” (idem, p. 20). Seu tempo era o Tempo Grande e também o Pequeno. Tempo de manga madura no quintal.

Machamba desafiava o mundo ao redor, desde os tempos de enciclopédia. Sim, foi por onde começou a construir as pontes, divisar os hemisférios, abreviar fronteiras. “Então vieram os treinos de beijo no bebedouro do recreio” (idem, p. 25). O nome dela era Machamba, sei que já disse. E não estava neste mundo para namoros, para se dar a qualquer desfrute. “Ela embarcava nos homens, mas nunca ancorava nos portos” (idem, p. 40). Jostein, Bruno. Luís, ah, esse sim. Mas “Luís não era para estar ali mesmo, ô vida besta” (p. 109). Hum… Havia o Daniel!

Gisele Mirabai é mineira de Belo Horizonte. Leitora de seus conterrâneos deixa pistas (ou atos falhos) em sua escrita, como a vida besta acima, intertexto com Drummond, entre outras pedras preciosas nessa obra minada que é Machamba. Sim, já disse e repito: seu nome era Machamba. E aprendera muito sobre antigas civilizações na Barsa que seu pai comprara há muito, nos tempos em que morava na fazenda. Falo de Machamba, não de Gisele. Sabemos que há mudanças inevitáveis: eu, Gisele, o leitor, e também Machamba.

Nossa heroína conheceu a religiosidade em casa, com os folhetins bíblicos que acompanhavam a enciclopédia; depois se defrontara com o paganismo grego. Com o mundo árabe e judeu em suas andanças. Ela sabia que “Os romanos se fecharam numa sala para editar a Bíblia, o livro mais lido do mundo, que chegava na fazenda em fascículos” (idem, p. 124). Pessoas quase como ela. Cheias de onomatopeias. “… expulsas de si mesmas nunca mais dormem. Nem comem” (idem, p. 53). Bacantes, presuntos nos misto-quentes.

Machamba não era de ninguém. Sabia de “Beijos cheios de mel e de consequências” (p. 141). Como também dos desejos masculinos que giravam em torno de “Tamanho, altura e poder” (p. 148).  Ela era sua própria luz. Fonte de onde o deus Hélio divisava o próprio brilho.

Ao longo da primeira parte (O Elo Perdido) percebe-se o lirismo contido, a linguagem poética, como fosse um tributo à de Adélia Prado. Na segunda (As Antigas Civilizações), espécie de digressão na qual a personagem mergulha em sua solidão (ou seria solidez?), a gente sente o sertão dentro da gente, extração mineral da obra de Rosa.

Machamba não sabe de que lado se encontra. A morte do pai, trancado no banheiro, a lasca de madeira que afeta o joelho, imagem decalcada que anaforicamente recheia a obra, se faz presente “Em qual margem do rio você se encontra agora” (p. 150).  A terra, o arado. Eros. Aedos. Aerados.

Há uma terceira margem. Eu rio. A rosa. O Rosa. Meu Luiz é com “z”. Sou da antiga ortografia, como meu pai. Também tive uma Barsa. Presente da madrinha. E que acompanhou todo o período escolar, quando as pesquisas se baseavam nela, certamente. Naquele tempo, pesquisar era copiar da enciclopédia. Mas havia aprendizado nesse copiar/colar, diferente do hoje.

Disse a Gisele outro dia que, quando fui morar no Rio de Janeiro, um primo me ofereceu pouso por um mês, até que arrumasse algum trabalho. Com medo de estourar o prazo acabei ficando com o primeiro que apareceu: vendedor de enciclopédia. Trabalhei por três meses. Vendi uma única para um delegado de uma cidade do interior de Minas Gerais. Logradouro próximo à Governador Valadares. Não sou do tipo que acredita em coincidências.

Luís, como Machamba, formou-se em geografia. E ela saltou dos mapas direto para uma viagem à Europa. Sem bagagem, trocando de roupas e deixando as velhas pelo caminho. Seu passaporte para o mundo pesava mais do que o próprio corpo, segundo ela mesmo diz. Está escrito no livro. Leia.

Queria falar de Daniel, mas não posso, não sei se quero, se devo. Talvez resida aí o grande mistério. Mesmo na África, paraíso dos leões, o mistério se faz presente. Recentemente li o livro de Maaza Mengiste, escritora etíope, “Sob o olhar do leão”, e confesso que sofri bastante com algumas passagens. Quero que Machamba volte para casa em segurança; e possa desfrutar da presença carinhosa daquele umbigo caramelo que a fez tão bem um dia. No mais, são “olhos, pássaros e cruzes” (p. idem, p. 149). Acho que também já pensei beijar alguém quando deitava os lábios no bebedouro da escola. Mas isso faz tanto tempo…

 

REFERÊNCIAS

MENGISTE, Maaza. Sob o olhar do leão. Rio de Janeiro: Record, 2011.

MIRABAI, Gisele. Machamba. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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