Por Santiago Santos*

Capitão, estamos a meia hora da terra.

Ótimo, Rosvaldo. Diga aos homens pra manterem a velocidade. Avise Fena que é hora. Peça pra ela arrumar suas tralhas e me encontrar na cabine.

Sim, senhor, capitão.

Quando Rosvaldo desapareceu, o capitão se permitiu afrouxar o peito, desguarnecer os músculos da perna, arquear os ombros e olhar o borrão azul que se espraiava à frente. Moleque ou homem no alto de suas faculdades, se orgulhava de divisar no carrilar do horizonte os humores do vento, de adivinhar como Odin, seu deus esquecido, soprava lá de cima. Descortinava mensagens nas nuvens, nos peixes e baleias que vinham à superfície beber de perto o calor do sol, no esgar dos rostos da tripulação a boca crivada que precisava de um pouco mais de ouro ou álcool pra apaziguar o espírito — e, quando isso não bastava, a prancha. Mas agora era um borrão depois do outro, nada que prestasse, e dependia sobretudo dos ouvidos pra continuar atinado no posto, e da memória que tracejava os caminhos de sua embarcação — fora dela, nu.

Ficou encravado na proa até descobrir o marrom no meio dos azuis. Desceu as escadas, vestindo o manquitolar com gingadas do quadril largo, e entrou na cabine. Fena estava ali, podia dizer pelo cheiro de vinagre que vinha do cabelo dela. Amuada no canto, abraçada à sua trouxa.

Pegou tudo, menina? Chegamos na casa de sua mãe. Você vai descer e, se os deuses forem bons, nunca mais subir. O que aqui tiver seu cheiro será queimado.

Hm-hm, ela resmungou, como costumava resmungar, falando pela entonação.

O capitão sentou na mesa, destampou a garrafa de rum e o serviu no copo de madeira escavada. Aproximou do rosto os papéis que tinha ali em cima, perto da chama da vela. O mapa de seu castelo, o documento real que transferia a posse de todas as suas propriedades, incluindo escravos e navios, ao portador, suas cartas de crédito, a oração que a mãe tinha lhe ensinado no leito de morte. Tudo o que possuía de mais importante, montante pelo qual homens matariam, trairiam, roubariam, dobrado e amarrado num barbante. Voltou a olhar pra cama. Fena continuava do mesmo jeito. Bebeu o vinho.

Sua mãe nunca disse por que você foi parar naquela ilha, ou disse?

Fena quieta.

Ela sabia que alguém chegaria lá, cedo ou tarde. Os marinheiros são tarados por um pedaço desavisado de terra. Aponte algo marcado num mapa a um homem do mar e ele escarra. Diga que nunca foi desenhado numa folha e os olhos brilham. Os verdadeiros homens. Os que conquistam e pilham e sangram e bebem e fodem até o sangue ferver. Mas ela sabia disso. E você, sabia?

Hm-hm.

O capitão ouviu os gritos da proa. O gingado do navio cedeu, as velas recolhidas. As cordas correram, o bote atingiu a água, a âncora mergulhou buscando o solo.

Venha, é hora.

Subiram a escadaria, e com a ajuda da tripulação desceram ao bote onde estava Rosvaldo, já segurando os remos. Na praia, Rosvaldo puxou o bote pra areia e os acompanhou até o limiar das árvores. Ali ficou. Seguiram juntos, o capitão e Fena, até o casebre. Fena disparou, abrindo a porta. O capitão enxergou, depois do limiar, o que não enxergava lá fora. Viu a garota enroscada no pescoço da velha, na cadeira de balanço, as agulhas de tear largadas no chão.

Uma gentileza, é claro, disse a velha. Quero que veja pra quem está entregando tudo o que conquistou na vida.

O capitão tirou o punhado de papéis do bolso, jogou aos pés da cadeira. Fena apanhou e entregou à mãe.

Muito bem, minha filha. Fez bem. A semente?

A garota passou a mão na barriga.

Esplêndido. O animal lhe tratou bem quando revelou sua identidade?

Dessa vez ela demorou a responder, mas logo balançou a cabeça em sinal afirmativo.

Pois bem, disse a velha. Se aproxime, capitão. Se ajoelhe aqui ao meu lado.

O homem obedeceu, desabando sobre o joelho mole. A velha puxou um fio de seu cabelo, um fio de sua barba, e no tear trançou ambos com um fio preto de lã. Deu na boca da filha. A menina engoliu.

Vê, capitão? Levante. Ande. Pule. Respire. Meu jogo é minha honra.

O capitão levantou, mais rápido do que esperava. Fisgou um golfo de ar, os pulmões quase explodindo, e soltou um urro que findou numa gargalhada.

Quanto tempo?, ele perguntou.

Até o nascimento da criança, disse a velha. Sabe, é engraçado. Um velho encarquilhado como você. Não visse minha ilha, viveria menos tempo do que esses meses até o nascimento de minha neta. Pra você, minha filha foi uma bênção.

Não é o que dirão minha esposa, meus filhos, meus netos de verdade.

Eles aprenderão a se virar, capitão. Sem suas benesses. Sem sua herança. Esta fica pra sua última filha. Que é de verdade também, seu tolo.

Tolo? Quem procura seu destino é tolo? Tolo é quem o desconhece. Você, Fena. Acha que sobreviverá ao nascimento da criança? Já viu alguma das suas irmãs com a filha no colo? Desperdiço minhas horas aqui.

O capitão cuspiu, deu meia-volta e saiu. Na praia, disse a Rosvaldo que remasse de volta. Mergulhou e nadou feito um peixe, escalou o navio pela corda, a tripulação enfileirada na amurada, boquiaberta. Hasteou uma das velas sozinho, disse aos homens que hasteassem as outras. E partiu, que as horas no mar tinham o dom de escorregar feito azeite, e ele tinha as que lhe restavam em alta conta.

Pela primeira vez em muito tempo, o capitão viu a linha do mar se chocar com a do céu, as nuvens enrodilhadas num cobre ferruginoso. Poucos homens tinham os dias contados e se permitiam sorrir com convicção. Os dentes do capitão brilhavam.

 

*Santiago Santos é escritor, tereréficionado, tradutor e jornalista. Mora em Cuiabá. 
Publicou em 2016 o livro Na Eternidade Sempre é Domingo, uma aventura pé na estrada 
carregada da história e da mitologia dos incas; Algazarra (ed Patuá) 2018; 
participou também da coletânea brasileira de ficção científica Fractais Tropicais,
e publica drops literários toda 
semana no www.flashfiction.com.br

 

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