PALAVRAS-CHAVE: deserção; chumbo; avesso; sangue; arrebentado; executado.
DEPOIMENTO: Estão lá a puta religiosa; a empregada doméstica cuidadosa e ignorada; a princesa estéril; a mãe órfã de seu filho; a prisioneira maternal; a redentora de uma cidade. Em cada uma delas, simbólicas e tão reais, o leitor se reconhece. Sou eu. E por quê? Porque essas mulheres são únicas e são de todos; estão espalhadas pelas ruas e no nosso imaginário (JAFFE, 2017, P. 10).
DESERÇÃO: A narradora começa com uma confissão que me remete à minha condição de filho. Quando minha mãe embarcava para São Paulo em uma das noites do final de dezembro de 1985 em um voo da falecida Transbrasil, às 03h30min da madrugada, depois de me fitar por longo tempo com seus olhos sedados, rompi o silêncio de não aguentar mais engolir palavras e perguntei: – O que você está sentindo? – ao que me respondeu de rompante: – O que os olhos dizem? Três dias depois desencarnou. Agora, ao ler as páginas iniciais deste glossário de histórias de Maria Fernanda me deparo com este “Eu soube que ela ia embora na hora em que ferveu a água do chá. Não foram os olhos quem disseram. Os olhos não diziam nada” (ELIAS, 2017, p. 15).
CHUMBO: A narrativa sugere a palavra silêncio muito além do verbete; parece ser elemento estrutural das narrativas. Sei que é um livro de contos porque a ficha catalográfica me avisa. A indicação a prêmios me confirma; a vitória na corrida pelo Jabuti realça e confirma o selo de qualidade imposto para os leitores. Golpe de sorte? Patuá! “sempre aquele silêncio, aquele olhar” (idem, p.25). Nada de botões coloridos para o guri brincar. Com medo do pai, “a mãe comprou uma espadinha de plástico e me mandou brincar” (idem, p. 27).
AVESSO: o cheiro da morte começa a povoar esse envoltório disfarçado de livro. De livre, nada. “Salvo nos velórios de gente rica, as flores ornando o defunto, o cheiro dos cravos acobertando a morte, para que ninguém se lembrasse de que morrer é feio e podre. O mesmo odor das carcaças das vacas atravessadas no córrego, o couro despregando das costelas, a carne ulcerada coberta de moscas fluorescentes” (idem, p. 31).
Histórias de morte nesta vida. História nas quais a presença do cravo e de violetas é representativa de outra dimensão. “A gente só queria o depois. O original, o fresco do novo, a sopa que fartasse a barriga, a barriga sem diabo, os gatinhos mamando nas tetas das mães, sem risco de pedrada, as tripas bem guardadas, os pelos limpos. Marrom, cinza e bege. Violeta nunca” (idem, p. 34).
SANGUE: O curso da vida em sua margem direita, esquerda, e uma terceira margem. É do lado desse barranco, para além das duas outras que me encontro para relatar o caso. “Engana-se quem toma a morte por figura tenebrosa, mulher morta encapuzada, carregada de foice afiada. A morte é bonita e suave e acima de tudo cheira bem. cheira a menta, a boca; flor, os cabelos; alfazema, as mãos; amêndoas, os seios” (idem, p. 57).
Ela se disfarça em meio a simbologias místicas, míticas, cujos donos, ou os que se apresentam como tal insistem em seus rituais milenares afrontando os corpos a castigos tremendos. “O padre esperava debaixo da mangueira, a navalha estendida na mão direita, a lâmina brilhando mesmo sem sol, como se as centenas de matanças tivessem conferido um brilho próprio, que não necessitava de luz. Só de sangue, veia e pele” (idem, p. 62).
Ao colocar um parente próximo para cometer o assassinato, a humanidade se co-responsabiliza pelo ato. Tão responsável pela morte o governo autoritário que apenas repreende; o empresário que especula e não gera renda, elementos dentre tantos integrantes das hordas que gerenciam os meios e os modos de produção. “Uma a uma as camadas do pescoço da avó foram violadas. O couro, as nervuras, a garganta. A avó não rezou. Disse ‘piedade’ até que a faca interrompesse a palavra, deixasse Manuela muda para sempre, morta para sempre. O menino, borrado de sangue violeta da avó, não riu mais” (idem, p. 63-4).
ARREBENTADO: …………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………”Sabia que seu destino estava abraçado ao dela” (idem, p. 88).
EXECUTADO: versão atualizada da lobotomia, este conto nos remete aos cyborgs, replicantes e coisas do gênero. “Esses caras que recebem as injeções viram excelentes trabalhadores. Produtividade máxima e nenhuma reclamação. Trabalham feito bicho, das sete às sete, comem qualquer coisa, pode até dar comida estragada que não reclamam” (idem, p. 116). Um personagem que não merecia existência além da ficção. Capaz de matar seu próprio bebê, estripá-lo, estuprá-lo, animalescamente. “foi só falar o nome do bebê, como se fosse um código. Os olhos dele ganharam uma cor de leite e o cara falou. Umas coisas estranhas sobre anjos, uma história sobre um cachorro que comeu uma criança. (…) falava com uma voz que parecia há muito tempo guardada, uma voz que há anos não dizia nada” (idem, p. 118).
“Saquei a arma. Quando ele viu que eu ia atirar, sorriu. A arma vacilou na minha mão. Ele disse coragem. Dei um tiro em cada olho. Explodi aqueles olhos enfeitiçados. Se eu guardo arrependimento? Foi o preço da minha paz” (idem, 119).
ENFIM, IMPERATRIZ: oito páginas pretas, com letras brancas, feito epitáfio na forma de conto. “Foi embora em uma terça-feira de fevereiro. Eu não era nada, se não podia ser mãe. Nunca voltei ao Irã. (…) a beleza dela era a medida justa para se casar com o Xá” (idem, p. 43).
Antecedido por outros quatro contos, este, que dá nome ao livro, tem um papel estrutural de apresentar as faces da morte no sistema prisional. A cadeia produtiva do livro, as grades do gênero ficcional, as amarras do texto narrativo, aqui se desintegram. Não há livro, não há gênero, não há vida fora da vida; e isso inclui a morte, rito de passagem. Há trinta e três anos perdi a minha mãe. O tempo guarda saudosas lembranças, embala a viagem que continua nos filhos. As dores e a exclusão de Teresa me trazem esse filme de volta. Este dossiê literário me apresentou alguns personagens de uma realidade presente. “Teresa pensou que não seria capaz de amar a filha. Que os anos de sofrimento tinham aleijado seu coração. Mas o cheiro de sabonete da cabeça da filha fez Teresa lembrar da mãe, que morreu quando ela tinha três anos, de uma veia que explodiu no cérebro” (idem, p. 98). Eu nunca havia ouvido falar sobre aneurisma cerebral. Até o dia 22 de dezembro de 1985.
REFERÊNCIAS
MAGLIO, Maria Fernanda Elias. Enfim, Imperatriz. São Paulo: Patuá, 2017.