Maria era uma jovem muito talentosa. A verdade é que tinha inúmeros talentos. Eram tantas as suas habilidades que ficava em dúvida sobre o que gostaria de ser profissionalmente. Borboleteava de uma atividade a outra sem nunca se deter definitivamente num projeto só. Num momento era padeira, em outro estilista, figurinista, faxineira, jardineira, sapateira, costureira, remendeira, professora, filosofa, pintora, poeta, ensaísta, artista de cinema, teatro, atleta, aventureira, enfermeira, carpinteira, sacoleira, doceira, verdureira, e eram tantas eiras que Maria se perdia em divagações, e passava os dias sonhando com a próxima profissão que desempenharia na vida.
Mas como ocorre com quem tem muitos talentos e não se decide por nenhum, não sendo nem uma coisa, nem outra, Maria tornou-se apenas mais uma sonhadora neste vasto mundo, de forma que acabou sendo um quase nada, vivendo da renda de alugueis de um sobrado herdado da mãe na rua dos esquecidos, numero 9. Na sua rotina doméstica orgulhava-se do seu próprio desempenho, cuidando da casa como ninguém. Isso deveria lhe bastar já que não se decidindo por nada, transformara a si mesma numa mera espectadora das suas ilusões.
Certa vez, enquanto lavava louça, observou a água que escorria em espuma pelo ralo e pensou, como um insigth filosófico: – “Nossa, assim é nossa vida escorrendo pelo ralo da eternidade, e levando embora nossos sonhos. Que grande filosofia! Acho que vou escrever um ensaio sobre o assunto!” Empolgada sentou-se ao computador, abriu uma página, ensaiou, ensaiou, mas não saiu do lugar, a única coisa que conseguiu escrever foi: “Sonho no ralo”.
Achou melhor então desenhar o ralo como o fim do universo para onde nossos sonhos escoam aleatoriamente independentemente da nossa vontade. O desenho não traduziu a ideia como ela a havia concebido e isso a deixou bastante frustrada. Abandonou o desenho, e dedicou-se a poesia. Infelizmente faltou-lhe inspiração e o poema, medíocre, acabou amassado e jogado no fundo do cesto de lixo que não deixa de ser uma espécie de ralo. A partir desse dia percebeu que a vida havia se tornado vazia e monótona sem grandes realizações. Logo ela, tão cheia de talentos e predicados.
Decidiu que era hora de tornar realidade ao menos uma parte dos seus inúmeros dotes. Abriu a maquina de costura e deu inicio a uma inusitada coleção de roupas extravagantes. O resultado não poderia ter sido pior. No bazar do amigo as roupas mofaram a espera de uma venda ocasional. – “Mais um sonho no ralo!” , refletia enquanto lavava as xícaras do café da manhã.
No entanto não desistiu, faria outra coisa, grandiosa e incrível e o mundo finalmente conheceria o seu grande talento. Fez pão. Delicioso pão da melhor farinha e os colocou numa sacola pensando com resignação filosófica que todos os seus sonhos cabiam numa sacola de papel, e saiu para vender, batendo de porta em porta. Mas, quis o destino que vendesse apenas um, e sendo assim voltou para casa mais uma vez sem dar conta de um sonho tão simples como fazer e vender seus pães.
Depois tentou com os doces, mas parecia que a vida, azeda, estava lhe dizendo “NÃO!”, e, de não em não, Maria foi gastando todos os seus talentos, guardados por tanto tempo para resultar em nada. Como verdureira guardou mal a verdura, e o alface murchou; como sapateira colou mal a sola, que se despregou; como enfermeira não usou a gaze, e a ferida aberta infeccionou; como jardineira esqueceu de regar, e o jardim secou. Como faxineira entupiu o ralo, e a água suja não mais escoou. Foi nessa hora que Maria, desesperada, se deu conta de que todos os seus talentos estavam vencidos! Não os usara quando jovem e cheia de energia, e agora era tarde demais. Sentia-se vencida e exausta e foi então queixar-se com uma amiga que a reanimou: – “Deixa disso Maria, que bobagem! Ninguém perde o talento que recebeu só porque não conseguiu usa-lo de uma vez, pense que teremos mais de uma vida pela eternidade afora e você com certeza terá uma vida para cada dom!”
Reconfortada com a fantástica ideia de que teria muitas outras vidas para realizar seus sonhos, Maria livrou-se do drama de querer ser isso ou aquilo, e passou a projetar seus sonhos para as próximas existências que teria no porvir. Assim transcorreu sua vida sem grandes alterações. Chegou enfim o dia da grande despedida, da derradeira passagem e Maria, já velhinha que estava, morreu. A morte a colheu dormindo, com extrema delicadeza, uma vez que ela sempre fora gentil e prestativa para com todas as pessoas, sem distinção.
Maria acordou no céu. Viu os anjos, cantando hinos de louvor, aquela coisa toda. Logo ficou animadíssima, querendo saber qual seria o seu destino, seu novo Eu, e se dessa vez chegaria a alcançar a concretização de todos os talentos que recebera como uma dádiva na vida anterior. Estava aflita procurando saber como seria o desenrolar dos acontecimentos, quando deu de cara com um amigo da época da faculdade que havia falecido anos antes. Era ele um senhorzinho simpático, baixinho e dono de muita espirituosidade, alegre e falante, passara a vida dedicado a escrever poesias.
-” Oh!” Disse ela, contente ao ver o amigo, “o que fazes ainda por aqui? Eu estou ansiosa pra saber como será a minha nova vida, meu novo destino, o que farei com os meus talentos que como sabes são muitos!” O amigo olhou-a por um instante boquiaberto. Ficou muito sério no primeiro momento e depois desatou a rir. -” Nova vida? Do que está falando, Maria?” Perguntou curioso, abrindo o guarda-chuvas que sempre levava consigo, pois começava a chover. Ficou ali parado por um momento, silencioso. E depois, seguindo seu caminho com o passo miúdo, gritou de longe:
-”Maria! Só se vive uma vez!”