Mas…
e se eu associasse a leitura deste livro a outros existentes de onde pode se nutrir um contador de histórias? Lembro-me do “Xangô de Baker Street”, de Jô Soares e de “O Retrato do Rei”, de Ana Miranda. O que haveria de comum entre essas obras? Giovana Madalosso traz à tona um recorte profundo e bem humorado dos bastidores de uma metrópole. O entorno da Avenida Paulista e seus corredores que levam ao centro da cidade são portadores de significados que desfuncionalizam aspectos hodiernos da grande urbe. É por onde um batedor de carteira profissional, vagabundo (avant la letre), e uma garçonete cleptomaníaca se (des)envolvem enquanto personagens tragicômicos de uma farsa contemporânea.
Porém,
a fábula envolve o leitor em microcapítulos em que o nível de tensão se dilui pela insólita linguagem que reverbera uma picardia de nível intelectual absurdo, contraditando as peripécias da protagonista. O tempo de uma urinada, aquele jato forte inicial seguido pelo ritmo descendente em direção ao vaso, é suficiente para que o roubo aconteça. A prepotência da pequena ladra vai ganhando contornos que firmam a desfaçatez com que é construída. O cara do chapéu se anuncia como portador de uma boa nova, um roubo que a distinguiria da simples e estapafúrdia condição de garçonete vilã. O curioso é o receptador dos produtos dos furtos: uma mulher trans, dona de um brechó especializado em quinquilharias de alto custo. Alguém que “só me chamava para tomar um chá na sala de trás e folheava revistas e comentava sobre roupas, os estilistas, a época em que foram feitas” (Madalosso, 2018, P. 25).
Contudo,
as personagens que orbitam o entorno da ladra, um bispo evangélico, uma arquiteta com câncer em estágio terminal, ou mesmo um professor erudito abandonado pela esposa por investir toda sua riqueza em livros raros, dentre outros de menor expressão, demonstram o caráter fluídico de valores decadentes da sociedade quatrocentona; por extensão, de todo e qualquer brasileiro médio; quiçá, da humanidade toda. Lembro-me de um livro lido recentemente, “Corações de asfalto”, dos escritores/jornalistas André Cáceres e Bruna Meneguetti, que traz para o primeiro plano personagens de carne e osso que frequentam as vias públicas de São Paulo encarnando almas preocupadas com o destino do patrimônio público, privados de apoio institucional.
Entretanto,
a cidade se revigora com todo o seu esplendor. André e Bruna conseguem em suas narrativas encontrar pontos de apoio nesse concreto armado para que se veicule o amor pela cidade. No que chamei de “Solo Asfáltico da Urbe” apresento entre outros um personagem que cuida do que vê de errado pelas ruas.
Rodrigo é zelador da cidade. Cuida de fazer reparos em tudo: calçada, poste, objetos quebrados que interpreta como “brechas”, pois não têm donos. Rodrigo é morador de Perdizes, estudou na FAAP e entre inúmeros números desfila boas intenções por onde passa. Constrói esculturas com material despejado diariamente nas ruas; “O Brasil produz lixo como um país rico, porém lida com os dejetos como um país pobre” (CÁCERES; MENEGUETTI, 2018, p. 30).
No entanto,
nessa mesma cidade, a garçonete e seu comparsa lembram muito a Bonnie & Clyde, casal de picaretas de filme norte-americano, até mesmo pela verossimilhança que faz de suas existências objeto de detalhamento inconteste de Giovana. Sua estreia em romances é de se tirar o chapéu, coisa que, aliás, o comparsa da vilã faz o tempo todo. Quando se envolve com um fotógrafo de guerra, via redes sociais, a verossimilhança do encontro beira o insólito: “a tua foto do Tinder, você tirou onde? Na casa abandonada pelo Saddam Hussein” (Madalosso, p. 86). A cena em que o bispo evangélico leva a garçonete para o hotel em que está hospedado e é desnudado daquela forma é, a meu ver, genial!
O problema é essa esmola que deus te deu. Não sei descrever a perplexidade do bispo, que, imóvel, com as calças arriadas, me vê pegando a bolsa e saindo pela porta. Enquanto ando pelo corredor, rápido para que ele não se lembre do que deixou comigo, penso que o que acabei de fazer não foi um castigo moralista, mas sim uma defesa. É muito difícil que um cara rico como esse vá aparecer no restaurante, a caminho do aeroporto, para pegar um blazer, mas se aparecer, não vai arrumar encrenca com uma bocuda que conhece tão bem seus terrenos mais íntimos (idem, p. 99).
O roubo da primeira edição de “O Guarani”, de José de Alencar, envolve o leitor por completo. Não há como não nos apaixonarmos pelo casal de pilantras; de torcer para que consigam seu intuito. Somos levados por uma agilidade na escrita que pode agradar a qualquer um. Não há dificuldades com a leitura, quer seja com o vocabulário, a sintaxe, a construção frásica de todo o conjunto. A conjunção carnal entre os dois não acontece, o que talvez gere alguma decepção para o leitor de romances cor de rosa. Este não é rosa. No céu azul dessa cidade cinza, este livro de Giovana Madalosso traz um sol sobre a cabeça do leitor inquieto, e que gosta de uma boa literatura. Li de uma tacada só, o que nem sempre é sinal de amor à primeira vista. Mas neste caso é! Gostei da escrita, da capa, da edição,
todavia…
REFERÊNCIA
CÁCERES, André. MENEGUETTI, Bruna. Corações de Asfalto. São Paulo: Patuá, 2018.