“Lá, onde uma porta jamais parou de bater” encontrei os rapazes da Arcada. Hélio Flanders e Walt Whitman como convidados especiais, assim foi o lançamento do pacote da Arcada no Arsenal, abertura da Semana SESC de Leitura e Literatura. Whitman na verdade não pode estar de corpo presente, mas esteve com a gente entre as folhas de relva e as folhas de papel encadernado de “Coitado do homem cujos desejos dependem”, dos versos no atacado e varejo da “distribuidora falcão”, de “você derrubou coisas pelo caminho” e “Lá, onde uma porta jamais parou de bater”.

Hélio Flanders

Coitado do homem cujos desejos dependem: pode ser que a dependência gere inúmeros problemas mentais, físicos, psíquicos. Mas a vontade da leitura é maior que qualquer outra. A dedicatória me joga no pântano da excrecência humana, uma vez que o apelo para que a companhia do protagonista seja agradável me enche de perturbações; após a leitura, é claro. E com carinho, ainda por cima! Logo às primeiras páginas, deparo-me com o que o narrador chama de “picolé de carne” e vejo a roubada em que havia me metido. Como fugir daquela leitura que me despertava asco, logo de cara? Somente encarar as páginas e mergulhar nesse vazio.

Rodrigo Meloni

Coitado do homem cujos desejos dependem: Era da Arcada, pois “As mãos tremiam, suava por inteiro. Mordia os dentes como quem mordia a mão do seu carrasco” (s/p). Do sangue do crime para o rosa do algodão doce. As variações cromáticas da prosa de Rodrigo Meloni vão preenchendo o vazio. É meu esse vazio da narrativa. E preenchido pela trama. As iniciais maiúsculas, no melhor estilo simbolista do dezenove, associada a um vocabulário hermético para os dias líquidos da contemporaneidade me parecem um estranhamento original do prosador. Algo parecido com o que chamam de estilo.

Coitado do homem cujos desejos dependem: lembro-me de duas referências literárias com as quais acho que este livro dialoga: “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan, pela suspensão a que o leitor é preso ao longo da escrita e “A Cartomante”, de Machado de Assis; este, mais pelo ambiente do que pelos elementos estruturais. Meloni não tem interesse em trazer distanciamento do narrador da problemática do protagonista, salvo por um ou outro elemento metalinguístico que o acomete.

“Lá, onde uma porta jamais parou de bater”, conjunto de textos da antologia lembrou-me de Mário de Andrade, para quem conto é tudo aquilo que o autor que escreveu chama de conto. Resolvido. Sendo assim, compreendo boa parte do que tenho lido recentemente nesta seara. O bruxo do Cosme Velho lembra o século retrasado, e o vampiro de Curitiba, o século vinte. São contistas.

Danilo Fochesatto

O vocabulário de Fochesatto traz certo preciosismo no uso da linguagem. Suas construções que habitam o “aquário de coincidências”, muitas vezes trava o fluxo do discurso. E não vai aqui nenhum juízo de valor. “Amor é egoísmo. Devemos praticar sexo porque sexo é altruísmo”. Entre o “descontrole assistido” e os “agentes da cleptocracia”, divirto-me a especular significados onde não alcanço. Seus textos são uma mistura de muitos anos. “Datar é enfeitar o papel com o tempo”.

Lorenzo Falcão

Lorenzo Falcão, por sua vez, divide seu livro em três partes: poemas do século passado e poemas deste século, com um bloco de hai kais pelo meio. Do passado lembro aqui dois fragmentos de “futuro” e de “cantada”:

(…)

compra e venda

de ideias

projetos e sonhos

metáforas e prosopopeias

(…)

(p. 9)

cantada

meus olhos querem te assaltar

e roubar tudo no bolso do seu coração

eu te amo e sinto falta de ar

e de arroz com feijão.

(…)

(p. 18).

Deste século trago:

poesias e poetas

poesias são essas coisas pegajosas

que nos pegam distraídos

em nossos cotidianos.

eu gosto delas.

(…)

poetas são essas coisas pegajosas

que nos pegam distraídos

em nossos cotidianos.

eu gosto deles.

(p. 49).

“Lá, onde uma porta jamais parou de bater” é onde “árvore só respeita vento; quando ele passa, ela, por educação, desvia”. O conto “Meu pai” me pareceu emblemático. Até porque o li ontem, no dia em que se completou um ano do passamento do meu. Desencarne de uma série de situações de amor e conflito. Um livro para ser pensado.

Júlio Custódio

Hélio Flanders na abertura do show leu um trecho de cada um e comentou da inovação estética da poesia de Júlio Custódio, em sua maneira de ver / ler, é claro. E eu concordo. Destaco os títulos que têm um impulso criador extremamente diferenciado. Tanto que me saltaram aos olhos, mais do que as inusitadas construções sintáticas e imagéticas de sua poesia. Tomei a liberdade de mesclá-los em uma sequência alternativa para criar outro poema, maneira que encontrei de dizer que gostei do livro:

 

cada madrugada tem seu vento

ao voltar do passeio

um passeio pela manhã

aos pássaros burros

ao homem que eu não cumprimentei na rua

 

me dê do céu o que sei que não existe

mais uma planta morre na janela

eu desenterrei opiniões antigas

como se inicia o vento

 

se algum dia a coisa vir

todos os buracos do colchão

os erros que você me traz

o  caminho das bolhas na água que ferve

espero sem tristeza a vontade passar

 

me observem os milagres

das janelas que destroem as viagens

aposto que suas mãos estão limpas

as chuvas estão nascendo

eu toquei em sua mão quando você me passou a tocha

 

há mais sujeira em não  sujar

o que eu diria aos mestres

ainda não tenho um eu que vos fala

 

 

REFERÊNCIAS

CUSTÓDIO, Júlio. você derrubou coisas pelo caminho. Cuiabá: edição do autor, 2018.

FALCÃO, Lorenzo. distribuidora falcão. versos no atacado e varejo. Cuiabá: edição do autor, 2018.

FOCHESATTO, Danilo. Lá, onde uma porta jamais parou de bater. Cuiabá: edição do autor, 2018.

MELONI, Rodrigo Maciel. Coitado do homem cujos desejos dependem. Cuiabá: edição do autor, 2018.

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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