Por Edelson Santana*
A democracia somente é possível com a livre manifestação de múltiplas vozes, nunca com silenciamentos. A condição única para que o ser humano possa se expressar de forma plena é a liberdade. Qualquer imposição de padrões de comportamento em busca de uma pretensa ordem não passa de tentativa de tolher a pluralidade de pensamentos. Diversidade é a norma, já que as pessoas se diferenciam entre si. A cultura é igualmente diversa, pois resulta das variadas interações humanas. Em tempos que repetem erros do passado, é necessário lembrar: normalização leva a apagamento de identidades, a seres que se emudecem.
Foi em meio a essas reflexões, como se reafirmasse em minha mente a importância da livre expressão nestes dias tão estranhos, que eu recebi Palavras para estrangular silêncios, o novo livro do escritor rondonopolitano Edelson Nagues, publicado pela editora Patuá. O título diz a que propõe – e cumpre. É livro de poesia vigorosa, discurso ecoado em voz firme e construído de palavras substantivas, as mais apropriadas para romper a insistência de qualquer vazio.
Na primeira parte, a poesia surge como referente, sendo ela mesma a matéria dos poemas. Já de início, Edelson Nagues apresenta suas armas: “Se bomba/o poema/se míssil, a estrofe/se revólver/o verso/se granada/a palavra/se lâmina/a sílaba/se bala/ a letra”. Poema de inspiração concretista, que explora habilmente o espaço branco da página, sem abrir mão da discursividade. É a profissão de fé de um poeta que não apenas reflete sobre a realidade, mas, diante da possibilidade da luta, se coloca na linha de frente do combate. Ele resiste a se acostumar com a lama, rejeita a “necessidade de também ser fera” e, pelo poder da palavra, reforça a capacidade de transformação inerente ao ser humano, como sugere “Palavra em risco”, poema-diálogo com “Versos íntimos”, de Augusto dos Anjos.
O (nosso) tempo e sua inexorabilidade é o eixo temático da segunda parte, onde a palavra volta-se ainda com mais força à poesia de cunho social e predominantemente urbana. Ainda que os tempos mudem, há fatos que se repetem e, assim, o que os olhos do poeta registram ganha aspecto de um documento indelével. “Há os que/ensi-/nam/há os que/em si/não”, denunciam os versos iniciais de “Uns e outros”, poema dedicado à luta dos professores do Paraná, arquitetado em um jogo linguístico que desvela os tipos de agentes que atuam em um outro tipo de jogo, o político, tendo a educação por cenário. Paisagens sociais dos diferentes brasis, a realidade vivenciada ou tirada da notícia de um jornal, tudo precisamente cartografado pelo poeta que vê, sente e dá forma pelas palavras.
“O viver, por si,/já se faz denúncia:/uma posse indébita.”, segue a tônica na terceira parte, que traz reflexões sobre o ofício de escrever, configurando-se não apenas um simples registro, mas um artifício, a velha e agônica arte poética de fingir aquilo que realmente é sentido. Influência notada no conjunto do livro, João Cabral de Melo Neto aparece em “De João Cabral para um poeta menor”, em que a voz do poeta recifense entoa uma lição de poesia a partir de considerações sobre a influência na literatura. Em versos de traços autobiográficos, o Pernambuco de Cabral aproxima-se do Mato Grosso de Nagues, em tom contundente: “A lâmina de minha faca/reflete o canavial./Mas as facas do cerrado/cortam num profundo igual”.
A perscrutação do silêncio, em várias de suas facetas, é tema de um poema mais longo – “Sobre o silêncio” – que constitui a parte final do livro. A sutileza de versos curtos que quase se perdem na imensidão da página, minuciosamente dispostos, pede ao leitor ainda mais participação, a fim de receber as palavras como sussurros, ainda que elas sejam densas, em atitude de quem ausculta linhas e entrelinhas. Silêncio que comunica pela incomunicabilidade, que diz pelo não dito, que é sem ser, não necessariamente antítese da palavra. Silêncio que pode permitir a destruição, mas também propicia a criação do novo: “o silêncio/da palavra/coagulada/no pensamento-/prisão/na ânsia/de se tornar/poesia”.
Não há como deixar de observar uma série de quatro poemas intitulada “Aletheia”, que fecham cada um dos blocos de Palavras para estrangular silêncios. De origem grega, a palavra aletheia é comumente traduzida como verdade, a chave para a compreensão da realidade. Em época de exacerbação da pós-verdade, ambiente propício para a proliferação das tantas fake news que moldam mentes inertes contemporâneas, a poesia de Edelson Nagues resiste como fonte da razão, contrariando a própria natureza da lírica tradicional, fazendo-se antilírica: “Há verdade na poesia./E vice-versa”.
Se este nosso tempo propenso a se resvalar continuamente na barbárie pede a mais humana das artes, a poesia – como escudo ou como oásis – é preciso mais do que nunca ler o rondonopolitano Edelson Nagues, uma das grandes vozes poéticas de sua geração.
Edelson Santana é jornalista e pesquisador de literatura em língua portuguesa