Por Leonardo Roberto*
10 minutos. Talvez nem isso. Uns 8. Foi o tempo reservado pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para a coletiva de imprensa no Centro Integrado de Operações Aéreas do Aeroporto Internacional de Cuiabá. O helicóptero aterrissou pouco tempo depois do horário previsto, às 17h30, nesta quarta-feira (21), em uma tarde sem nuvens, porém atipicamente cinzenta, no Hangar do aeroporto Marechal Rondon, trazendo o notório negacionista climático, acompanhado do governador do Estado, Mauro Mendes.
Descobri, horas antes, sobre sua vinda por meio de uma mensagem encaminhada por uma amiga, que convocava ambientalistas para uma recepção “calorosa” para Salles no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Encaminhei a mensagem para alguns colegas, mas, aparentemente, ninguém sabia da visita, que não estava em sua agenda oficial. No portal do Ministério do Meio Ambiente descubro que o ministro concederia entrevista em solo cuiabano. O aviso de pauta informava que, na companhia do governador, o ministro sobrevoaria o Parque, passando também pelos municípios de Sinop e Sorriso, para então conceder um espaço do seu precioso tempo para a entrevista em Cuiabá. Uma informação marcada como “importante” atestava que não seria necessário credenciamento. Diante da repercussão internacional das queimadas, fiquei espantado ao saber que o contestado advogado, ex-secretário particular do ex-governador de São Paulo (Alckmin), ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo, fundador do Movimento Endireita Brasil, condenado por fraude ambiental, investigado por atividade ilícita na junta comercial de São Paulo e atual ministro do governo Bolsonaro, vinha para Cuiabá. E a grande maioria das pessoas, aparentemente, não sabia disso.
Eu, como muitos (talvez nem tantos assim), gostaria de conversar amigavelmente (talvez nem tão amigavelmente) com o responsável pela pauta de preservação natural do pais, especialmente ao ver, ao longo de dias, imagens de tatus, gambás, tamanduás e cachorros do mato fugindo do fogo, bem como acácias, angicos, aroeiras, ipês, gerivás, jequitibás, jatobás e outras centenas de espécies endêmicas do cerrado ardendo em chamas. A Amazônia, por sinal, até esta quarta-feira (21), agonizava há 16 dias. O Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, por sua vez, queimou por 10, enrubescendo e abrasando 12% de seu território. Enquanto a floresta tropical com a maior biodiversidade do mundo torrava, eu ligava para a assessoria de comunicação do ministério para saber se seria possível participar da coletiva, já que não havia credenciamento. “Liga lá na SEMA, fala com a fulana”. “A coletiva é para imprensa, mas como não há credenciamento, pode participar sim”, “Perguntas só sobre as queimadas, ok?”, “Tudo bem”.
Minha surpresa com a facilidade de acesso ao ministro que tem sido acusado de omissão e improbidade administrativa – pela segunda vez – só foi superada pelo caminho da minha casa até o hangar: 4 camionetes do IBAMA, com os escritos de “Amazônia legal” rumavam sentido aeroporto com as sirenes ligadas na avenida da FEB, seguidas por algumas blazers da polícia militar. “Vai ser tumultuado”, pensei. Não poderia estar mais enganado, inclusive, deveria ter desconfiando pela cara de dúvida dos pedestres que assistiam à movimentação, olhando, encucados e passivos, enquanto os veículos e suas sirenes cruzavam a avenida. Perto do aeroporto, os carros oficiais desviaram do caminho de acesso e seguiram no sentido do centro de Várzea Grande. Ao chegar na rua Santos Dumont, que dá acesso ao Centro Integrado de Operações Aéreas, não vi nenhum carro, viatura, camionete do exército ou algum tipo de protesto. “Errei o caminho, de certo”. Perguntei a um trabalhador do aeroporto sobre a comitiva e como chegar ao centro. “Coletiva?”. “Coletiva não sei, mas segue reto, o centro é logo ali”. Como um turista procurando informações, pergunto sobre a coletiva para um militar que me indica a entrada. Minutos depois estou cercado de aviões de pequeno porte e de helicópteros no tal hangar, na companhia de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Alguns deles conversam ruidosamente sobre futebol, sobre o D’Alessandro, sobre o Corinthians… Outras jornalistas fofocam sobre o salário alheio. Um grupo distinto de mulheres jovens tirava foto do céu opaco enquanto coordenavam suas perguntas estrategicamente. Nesse momento, escuto alguém dizer: “ele é ligeiro”. E isso foi a coisa mais precisa que ouvi nessa tarde.
Com o barulho das hélices, formou-se um aglomerado de fotógrafos para registrar a chegada do helicóptero que descia daquele céu espesso, com tímidas manchas alaranjadas encobertas pelo borro grisalho que vem roubando nos últimos dias, o horizonte abrasado dos fins de tarde, tão característicos do Centro-Oeste. O resultado de uma dessas fotos pode ser visto na reportagem do O Globo. Essa fotografia, por algum motivo, me fez lembrar o cartaz do filme Cães de Guerra. O ministro chegava em Cuiabá e logo após o pouso, dirigia-se diretamente para a sala VIP, com assessores, seguranças e o governador do Estado. Através do vidro espelhado era possível ver flashes e abraços em poses para fotos. Logo depois, Salles e Mendes reapareceram para dar início à coletiva.
“De todos os locais que vimos, alguns locais foi fogo intencional e alguns, fogo incidental, o que é muito ruim para a saúde da cidade mas o governador tem feito esforço nesse sentido” [SIC], “… precisamos receber mais recursos em razão do bom trabalho (de preservação) que se faz no país…”[SIC], “… não há nenhum incentivo a atividades criminosas e o Brasil precisa continuar dando o exemplo.”[SIC], “…precisamos enaltecer o que tem sido feito pelo governo do Estado, ao governador Mauro Mendes.”[SIC]. Sic, sic, sic. São recortes, é verdade, mas é possível atestar a veracidade desse meu relato nas reportagens dos consolidados veículos de comunicação regionais que estavam ali presentes. Disse também que a área urbana é a mais atingida pelas queimadas e decretou que as principais causas são o calor, a secura e os ventos. Negou ainda que houve corte no orçamento para o controle de incêndios florestais. Quem conhece o modus operandi de Salles, entende que as perguntas feitas a ele são, de certa forma, desimportantes, pois sua cartilha de respostas enfáticas tem a habilidade de costear o cerne das questões apresentadas e podem soar como alheias às genuínas preocupações ambientais, acompanhadas de um olhar distante, tal como um ventríloquo controlado por um orador eloquente e experiente. Cinco ou seis perguntas respondidas e a palavra foi passada para o governador, que agradeceu entusiasticamente a presença do ministro, declarando que o receber é sempre um prazer para Mato Grosso, “mas agora o ministro teria que se retirar”, sob o pretexto de viagem. Ricardo Salles parecia cansado, tinham sido horas de viagem em um dia que começou com vaias na Semana do Clima em Salvador. Sem conseguir fazer minha pergunta, pensei em Jorge Ben: “Pedi você/ pra esperar cinco minutos só/ você foi embora sem me atender” … ainda que a brasilidade talentosa da canção de Jorge Bem Jor não combine em nada com a imagem sórdida que acompanha Salles e o atual governo em minha cabeça.
Numa sincronia de revezamento olímpico, o também enfático e assertivo governador, tomou um tempo um pouco maior do que seu colega de governo para responder às indagações. Defendeu a responsabilidade de sua gestão no Estado que é o maior produtor de alimentos do mundo, classificou como “peculiar” o estilo do presidente da república, afirmou estar participando de conversas para obtenção de fundos de preservação alternativos ao Fundo Amazônia, reiterou a afirmação do ministro ao dizer que grande parte das queimadas ocorreu em zonas urbanas, principalmente no entorno de rodovias. Em algum momento afirmou que, quando começou na vida pública, o político Bolsonaro nem existia e que desde então já havia presenciado dezenas e dezenas de queimadas em Mato Grosso. O que mais me chamou atenção, foram as piadas pirofágicas do governador. Algo como: “vocês querem ver o circo pegar fogo, né?!”, rindo amistosamente enquanto os jornalistas se acotovelavam para mais perguntas. Em suma, para o governador, está provado que os incêndios não têm relação com a produção rural idônea do estado e ainda há espaço para o bom humor.
A Amazônia continua queimando, o Fundo Amazônia continua bloqueado, a maior parte dos cuiabanos não saberá da passagem relâmpago do ministro, os indígenas caminham para a mendicância urbana sob o discurso de integração, a mordaça aperta na FUNAI e no ICMBIO, as bancadas da bala, do boi e da bíblia se empoderam enquanto produções com a temática LGBTQ+ são censuradas, o Brasil continua pornograficamente subserviente ao governo norte-americano, o Planalto se torna um puxadinho da milícia e, paradoxalmente, o Mato Grosso continua como referência na produção sustentável de alimentos. Nada novo sob o sol. No caminho para a casa, em um semáforo da Avenida Tenente Coronel Duarte, um sujeito, ostentando uma faixa “contra a indústria da multa” e algo mais sobre radares, abordava os motoristas parados no sinal, se promovendo como candidato a vereador. “Ô, vereador!”, chamei e perguntei por que ele não tinha ido ver o Ricardo Salles. “Que Ricardo Salles?”… Pô, vereador…
Por fim, minha pergunta, sobre o Dia do Fogo, organizado por produtores rurais do sudoeste do Pará, “amparados pela palavra do presidente” e as declarações de Bolsonaro, pensadas para o ministro, acabaram sendo respondidas pelo governador. Desafio o bom entendedor a identificar o ato falho nos últimos segundos da resposta de Mauro Mendes. Realmente, Mauro… Lamentável.
*Leonardo Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG).