Os romancistas não escrevem sobre seus assuntos, mas em torno deles, diz Julian Barnes. E Stephen Vizinczey arredonda este pensamento com uma frase precisa e luminosa: “o autor jovem sempre fala de si mesmo, até quando fala dos outros, ao passo que o autor maduro sempre fala dos outros, mesmo quando fala de si mesmo” (MONTERO, 2015, p. 168).
Não tinha ideia do que seria esse livro, como, aliás, muitos outros com os quais me relaciono. Acontece que à medida que a leitura fluía fui me sentindo em uma ambientação que lembrava em muito algum filme do Almodóvar; qualquer filme, nenhum especificamente. O título faz alusão a um deles apenas para encetar a discussão. Essa impressão também me surge da leitura de outro de seus romances: “Te tratarei como uma rainha”, como ilustra a citação abaixo:
A referência à obra de Shakespeare é no mínimo risível. Mas em “A louca da casa” a ficção mescla-se a comentários sobre a prática textual de ficção, da qual se podem extrair dicas interessantes para se experimentar. Ou mesmo para pensarmos o próprio ato de ler. “Escrever romances é a coisa mais parecida com apaixonar-se que já encontrei (ou melhor, a única coisa parecida), com a apreciável vantagem de que, na escrita, não se precisa da colaboração de outra pessoa” (2015, p. 9).
E nessa wibe, a narração segue seu itinerário repleto de nuances, de lembranças, de situações inusitadas. “Mas no ofício de romancista há uma coisa muito mais importante que esse tilintar de palavras, e é a imaginação, devaneios, essas outras vidas fantásticas e ocultas que todos temos. Faulkner dizia que um romance é a vida secreta de um escritor, o obscuro irmão gêmeo de um homem” (idem, p. 13). Para Rosa Montero, a palavra louca é metáfora para a imaginação.
Para mim, o famoso compromisso do escritor não consiste em engajar suas obras a favor de uma causa (o utilitarismo panfletário é a traição máxima ao ofício; a literatura é um caminho do conhecimento que precisamos percorrer carregados de perguntas, não de respostas), e sim em permanecer sempre alerta contra o senso comum, contra o preconceito próprio, contra todas as ideias herdadas e não questionadas que se infiltram insidiosamente em nossa cabeça, venenosas como o cianeto, inertes como o chumbo, más ideias que induzem à preguiça intelectual (idem, p. 39).
Não estamos diante de quem apenas brinca com as palavras. Mas de alguém que dá o tratamento necessário para a construção do discurso. De alguém que objetifica sua escrita com o devir necessário que o escritor detém. Ou deveria. “Todos nós sabemos quando nos vendemos” (idem, p. 43). Ao descrever situações em que se reflete sobre o que move o escritor diante do papel em branco, Rosa Montero traveste sua narradora de poderes sobre os quais as teclas do computador se movimentam a procura da palavra certa.
Esta última citação, trago-a por concordar em gênero, número e grau. De todas as lições que traz, em “A louca da Casa” a que me pareceu de maior valia foi, sem dúvida a de que “um verdadeiro romance sempre terá alguma coisa sobrando, alguma coisa irregular e desleixada (os crustáceos grudados na baleia), porque é um reflexo da vida, e a vida nunca é exata” (idem, p. 100-1). Agora tenho atrás de mim outro de seus romances: “Lágrimas na chuva” aguarda pacientemente pela sua vez.
REFERÊNCIAS
MONTERO, Rosa. Te tratarei como uma rainha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
A Louca da Casa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.