Por fauno guazina*
(Som de motor e gente, barulho de catraca, cheiro de fumaça)
Dizem que pegar um ônibus coletivo pelo menos uma vez na semana faz com que se renove a humildade dentro da gente, nos lembra da nossa condição de cidadãos, coletivos…
Vc ja tomou sua dose de humilhação disfarçada de humildade hoje?! Qual foi sua dose? 1001, 3100 ou 5600? Já foi pra integração? Aquela que não une, não melhora, não facilita, não integra! Todo dia, no mínimo dois pra ir, dois pra voltar, minha sina! Meu barco, minha nau, meu navio negreiro, minha condução.
— VAI DESCER MOTÔÔÔÔ!!!
— Hoje ele parece que tá transportando vaca…
— Acho que se fosse vaca ele seria mais gentil…
— Verdade, vaca se come, a gente é só isso daqui!
Do nada aparece alguém mais mal cuidado que nós mesmos e me da um folheto, evito olhar, evito sentir que estou ali, tento ignorar, uso fones de ouvido, uso livros pra disfarçar minha miséria diária de ser transportado sem nenhum cuidado, sem nenhum valor… evito pegar no celular, posso ser assaltado!
Os ônibus da cidade, quase quatro, quase malditos quatros reais por um serviço de merda, com gente que trabalha como se fosse capataz, que me trata como se fizesse favor, que me olha como se fosse melhor, que me assedia, que as vezes, só as vezes me trata com indulgência, principalmente quando estou melhor vestido.
Nesse lugar, as vezes sentado, as vezes em pé, as vezes amassado, esfregando-me entre os outros, tantos corpos que valem menos que o próprio assento, que a própria condução, corpos roçando entre si, com nojo uns dos outros, todos iguais neste busão, igualados pela situação.
— VAI DESCER MOTORISTA!!!
— Hoje ele já queimou umas duas paradas…
— Ainda bem, tá lotado mesmo, se ele parar não vai ter como entrar…
— Verdade, pelo menos assim chega mais rápido…
Todo dia a mesma coisa, nunca tem horário correto, muitas vezes não vem nenhum, as vezes vem dois ou três de uma vez, não dá pra saber ao certo o que vai ser naquele dia. Se chover fecha os vidros, vira sauna, se faz sol abre os vidros, vira frango empanado da arreia que a gente come, veste e é… a gente não passa de detrito transportado no busão, mão de obra, controlada pelo valor da passagem.
Hoje dei com a mão, mas o desgraçado fingiu que não viu, me deixou sozinho no ponto, já era tarde da noite e estava com medo, peguei o primeiro que veio depois, mesmo parando mais longe de casa, mesmo demorando mais pra chegar em casa, mas pelo menos não ficaria ali, naquele ponto, naquele lugar sem assento, sem coberta, sem segurança, sem nada. Aqui, nada é o padrão do sistema da cidade.
Foram quatro aumentos só neste ano, mas são cinco anos dos mesmos veículos que me transportam, o preço sempre sobe e a qualidade sempre cai, despenca, porquê aqui, pra nós que vivemos de condução, tudo é inversamente proporcional… 507 passa a cada 15min, as vezes chega a passar três ou mais de uma vez, as empregadas dos ricos não podem atrasar, mas pergunta se tem busão da perifa pra praia no final de semana?! Pergunta se tem aumento da frota pra sair do trabalho no final do dia?! Pergunta pra quem?!
— VAI DESCER PORRA!!!
— Ele não viu que a parada tava solicitada…
— Coitado, tá fazendo o serviço de motorista e cobrador…
— Coitado de mim que vou ter de descer no escuro e voltar cinco quadras sem calçada pra chegar em casa.
— A gente é tudo coitado…
— Fudido mesmo…
601 teve arrastão hoje, mofí levou tudo, entrou, pulou a catraca, arma na mão, passou de assento em assento, pegou celular e tudo que julgou de valor, por sorte não me viu, dei sorte, até quando vamos ter de contar com a sorte, ele tinha uns quatorze anos, o que faz um menino estar tão desesperado a esse ponto? A que ponto chegamos? Parece trocadilho, mas é só indignação…
Todo dia… todo dia a mesma coisa, indignação, raiva, humilhação, de repente já estou dentro do busão de novo, ja to pagando os quase quatro reais dessa merda de condução, que me transporta por essa cidade que me liga de lugar nenhum para qualquer outro ponto que não me traz nem alegria nem esperança de ver isso aqui melhorar…
E quando a gente indignada fala em queimar, em parar, em bloquear, a gente é tido de radical, de louco… de marginal, de bandido, que se já tá ruim desse jeito imagina se depredar… e a minha vida?! Como é que vai? Quem vai pagar pelo tempo que perco e que não volta, minha vida não tem parada, depredada dia após dia, o único ponto é essa maldita indignação que nunca é suficiente pra explodir essa situação de condução coercitiva diária, sem qualidade, sem esperança, sem nada…
É assim… sempre foi assim, disse a empregada doméstica, a atendente do consultório e porteiro do meu lado. Mais que gados, todos bípedes implumes indo para o abatedouro, esperamos pacientemente e aguentamos o tempo que for necessário nesse ponto que nunca muda, a não ser pela deterioração da frota, dos passageiros e funcionários… nós morremos dia a dia, mortos sendo transportados quase vivos, quase funcionais, de ponto em ponto, costurados na malha do tecido social e na trama da cidade, levados por estes navios de metal, que rodam por cima de todos nós sem parar, ardendo sem queimar…
eles venceram e o sinal está fechado pra nós….
Amei o texto: cinestésico, engraçado mas triste. Dá pra ver que as linhas mencionadas não são de Cuiabá, mas em todo canto do Brasil é esse caos o caro transporte coletivo, que muito contribui para desumanizar seres humanos… dizer um simples bom dia ao motorista é na maioria das vezes missão impossível!