Minha filha, um pai desaparecido, a mãe doente, o namorado sumido, o país distante, a revolução fracassada. Sabe o que te resta agora, Írinka? A vida, e isso não é pouco. Você veio aqui me encontrar e isso deve querer dizer alguma coisa. A vida é o que está acontecendo a todo momento e agora, por menos que isso possa parecer, eu estou aqui. Você sabe disso, não sabe? (JAFFE, 2015, p. 206).
Professores de escrita quando falam da pesquisa, e de como esse material deve ser utilizado na construção de um enredo, no desenvolvimento da trama, são enfáticos (em sua grande maioria) ao afirmar que deve ficar no pano de fundo, nas relações contextuais da obra, nunca no entorno imediato da personagem. Na prática, observamos que muito dificilmente isso é levado ao pé da letra. Mas “Írisz: as orquídeas”, de Noemi Jaffe é uma dessas preciosidades em que se percebe a aplicação tática dos “técnicos” levada ao extremo.
Para ilustrar a importância do distanciamento da pesquisa para com a escrita, registro a opinião de Camus, para quem
É preciso ser dois quando se escreve. Na literatura francesa, o grande problema é traduzir o que sentimos para aquilo que queremos que seja sentido. Chamamos de mau escritor aquele que se exprime levando em conta um contexto interior que o leitor não pode conhecer. O autor medíocre, dessa forma, é levado a dizer tudo o que lhe agrada. A grande regra do artista, ao contrário, é esquecer parte de si mesmo em proveito de uma expressão comunicável. Isso não ocorre sem sacrifícios (CAMUS, 2018, p. 17).
Para construir seu romance, Jaffe propõe uma mergulho nas relações de um pós-guerra que dilui uma cultura, separa famílias, projeta vidas em descompasso com o cotidiano anterior e, com isso, as relações verticais se horizontalizam à medida em que se constroem outros espaços de convivência. As comparações entre a língua e cultura do país de origem com as orquídeas vai dando sentido às relações que Írisz constrói, à margem das perseguições e dos desaparecimentos políticos. “Rizomas como ela, a língua húngara e as orquídeas – que ela veio estudar para se alegrar e se punir – precisam que lhes cortem as raízes para brotarem de novo” (JAFFE, p. 14).
A protagonista que (quase) não tem voz vem ao Brasil para pesquisar o desenvolvimento de orquídeas no Jardim Botânico de São Paulo. Sempre ouvi falar de como homens gostam de orquídeas, tenho inclusive amigos que são orquidófilos, mas jamais havia parado para pensar em razões filológicas para isso: “Se a palavra orquídea vem do latim, Orchideae, e significa `testículo`, por que em português, ela é feminina? Como elas rastejam no ar? Você já viu uma orquídea se masturbando ?” (idem, p. 17).
Noemi Jaffe faz parecer natural e espontânea toda informação botânica fruto de intensa pesquisa sobre o assunto. A temática familiar, as relações entre pai e filha, filha e namorado, mãe e pai separados é costurada por essas curiosidades sem que haja sobreposição de conteúdos a fim de macular a trama.
Os relatórios apontam que a descoberta da Hardingia foi feita, recentemente, num local chamado ilha do Mel, no Paraná. Lá as abelhas-machos abundantes se deixam seduzir por qualquer flor cuja aparência se assemelhe mesmo que só um pouco à de uma fêmea. É por isso que devem surgir ali tantas espécies novas de orquídeas (idem, p. 30).
Camus aparece na construção literária, e desse construto sobressai-se uma pintura que brinda o universo ficcional: “Alguns meses atrás, lemos juntos Albert Camus dizendo que seu maior desejo era que o povo húngaro persistisse em sua resistência, porque somente isso poderia atingir a opinião pública internacional” (idem, p. 57). Os ensinamentos do mestre são contundentes quando nos apontam o risco dos excessos, o grau de comprometimento da escrita quando se erra na dose. A seu ver, em um romance “toda a filosofia passou pelas imagens. Mas basta que ela ultrapasse as personagens e a ação, que apareça como uma etiqueta sobre a obra, para que a intriga perca sua autenticidade e o romance, sua vida” (CAMUS, 2018, p. 119).
São muitas as referências a Camus no romance. O fato de considerar os ritos como ações totalitárias de religiões oficiais, e não de política, por exemplo, é determinante. Para ele, “se um Estado força um pai a entregar seu filho e se a denúncia passa a ser considerada uma virtude, o que está em jogo é uma religião e não uma política” (idem, p. 132). Cada dia lembro mais de Riobaldo e seu discurso que reverbera fortemente para muito além de Cordisburgo, e de todo o território das Minas Gerais. Viver está verdadeiramente se tornando algo muito perigoso!
REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert. A inteligência e o cadafalso. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.
JAFFE, Noemi. Írisz: as orquídeas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.