Árabes e judeus: até quando a contenda? A leitura de “Yaser”, de Eda Nagayama me traz novamente esse gosto acre na boca. “Ele acorda e, no espelho, lava a noite do rosto” (NAGAYAMA, 2018, P. 11). Que metáfora é essa? A noite embebida pelo rosto, tatuada na face, e quem para oferecer a outra? “Ser palestino é ser suspeito: o nome pode constar em uma lista ou a foto em um banco de dados e então a autorização para cruzar o checkpoint de Qalandiya, entre Ramallah e Jerusalém, será negada” (idem, p. 21).
Árabes e judeus, até quando para que se compreenda que não há lado certo na disputa. “A Cisjordânia é uma grande prisão a céu aberto. Mas pode ser pior: a Faixa de Gaza, cela apertada e explosiva” (idem, p. 25). As metáforas de Nagayama recortam por dentro a narrativa explosiva que reabre a fenda diariamente. O contraste de duas culturas em franca disputa por detalhes, pedaços de terra, chão de esperanças. “Depois de 48 horas de exercícios, os soldados partiam, com a mira mais apurada e deixando para trás muitos buracos de bala nos reservatórios de água vazios” (idem, p. 26).
Esta última cena me lembra o filme “Bacurau”. Também me vem à mente o cenário do sertão pernambucano, onde há quase dois anos vi mil litros de água vendidos por setenta reais. O preço de manter tal esperança viva é a paga pelas escolhas que encorajam um povo. Qualquer povo. Qualquer dita, lida, ou coisa que o valha. Há muitas maneiras de se extinguir uma cultura. “Sabe que o sofrimento pode escrever na pele de dentro, e nunca mais se apagar” (idem, p. 28).
O sofrer como medida de todas as coisas. “Que os palestinos sigam para longe, para onde bárbaros, árabes e muçulmanos possam se matar uns aos outros à vontade” (idem, p. 30). O ideal de igualdade levado ao extremo. A ficção não chega aos pés da realidade. Eda Nagayama nos conduz por esse labirinto. Nenhuma guerra pode ser santa. “Pobre e sem petróleo, a Palestina interessa pouco ao mundo. Mas, para Ghassan, a vida só faz sentido ali, nessa prisão a céu aberto da qual não quer sair, por temer não conseguir regressar” (idem, p. 40).
“Queria contar também seus litros de água, já que uma parte do que compra sempre se perde pelo caminho: as autoridades são mais eficientes para cobrar do que para cuidar dos canos” (idem, p. 50). Assentamentos feito barris de pólvora. Muitos muros; lamentações. “O trator não veio e o buraco ficou. Para compensar, o primo acredita que fizeram mais furos nos canos: a água que compra todo mês dura cada vez menos” (idem, p. 54). A colonização de hábitos sutis, hábitos fora da norma, conceitos equivocados na condução dos destinos.
Um dia, Yaser vê o filho caçula de Manal vestido de Homem-Aranha. Aos dez anos, o menino se põe rapidamente em posição de defesa para, em vez de pedras, lançar sua teia. Cuidado com os soldados!, adverte. E faz que sobe pelas paredes com suas patas aderentes (idem, p. 61).
Como entender a vida injusta imposta a toda uma população? Dinheiro que vai, dinheiro que vem. O fundamentalismo econômico mesclado às indulgências da carne. “A terra sem decepcionar nem trair se a água pouca bastou, e se Yaser cuidou dela todos os dias. Um afago, uma vigilância boa. Menos horta, mais jardim. Se ali pouco deixavam florescer os homens, ao menos as plantas” (idem, p. 63).
Eda Nagayama é paulistana, escritora e atriz. Graduada em Artes Cênicas, publicou “Desgarrados”, pela (falecida) Cosac Naify em 2015, viabilizado com recursos do PROAC, programa de fomento da prefeitura da cidade de São Paulo. A literatura feita por mulheres continua avançando, a passos largos. Que venham outros livros. Que a escrita de mulheres cresça e fertilize mais editoras e fomente a discussão que agregue qualquer discurso de liberdade, de toda espécie. Viva a diferença!
NAGAYAMA, Eda. Yaser. Cotia: Ateliê Editorial, 2018.