Zumbi, meu zumbi.
Hoje meu coração eu arranco
Zumbi hoje eu fui ao banco
E ainda estou presa
Escuto os seus sinos
e ainda estou presa na senzala Bamerindus
Presa definitivamente
Presa absolutamente
à minha conta
corrente.
(Elisa Lucinda)
Chico César é um dos grandes compositores brasileiros, e também um dos mais criativos. Neste mês de novembro, em que se comemora mais um ano da passagem do grande Zumbi dos Palmares por este planeta, as comemorações estão, como sempre, a mil por hora. O título desta crônica, como a epígrafe, serve como “hall” de entrada para os comentários acerca de “O caminho de casa”, narrativa de Yaa Gyasa, que acabo de ler.
Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Eliana Alves Cruz, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo. Há muitos nomes de destaque na literatura brasileira. Nomes fortes de mulheres que fizeram da caneta, da letra escrita, o registro de uma história, uma vida, não uma pena. O romance da escritora ganesa que mora nos Estados Unidos da América atravessa dois séculos e meio de uma genealogia repleta de elementos históricos vertiginosos, ascensão e queda de um autoritarismo contundente que vitimou centenas de milhares de pessoas e que, por tabela, ajuda a contar um pouco de nossa falsa democracia racial. Livro de estreia com repercussão acima da média.
Se penso a emancipação e a publicação da emenda de número 13 à Constituição americana como um ponto de partida para esta discussão, o filme “Lincoln” me ajuda a compreender algumas motivações que afetariam a economia americana, opondo democratas e republicanos acerca da igualdade entre os povos. “Um soldado entrou no calabouço e começou a falar. Ele precisou tapar o nariz para não vomitar. As mulheres não o entendiam. A voz dele não parecia zangada, mas elas tinham aprendido a recuar ao avistarem aquele uniforme, aquela pele da cor da polpa de coco” (GYASSI, 2017, p. 50).
Yaa, com sua narrativa densa, pulso firme na condução dos sentidos, promove uma inquietação no leitor, de maneira que não se pode ficar insensível ao discurso subjacente. Duas irmãs separadas pelo poder sobre humanos, ignonímia cruel. “Elas são como uma mulher e a imagem do seu reflexo, condenadas a ficar cada uma de um lado do lago” (idem, p. 65).
Os capítulos alternam o histórico de cada uma, suas ramificações, históricos distintos que opõem vidas e impõem limites. “No Barco Grande, Esi dizia, eles eram postos em pilhas de dez pessoas; e quando um homem morria em cima de você, seu peso esmagava a pilha, como cozinheiras esmagando alho” (idem, p. 110-11). A leitura é dolorosa. Os incômodos sugeridos pela narrativa vão deixando marcas que nos projetam em um tempo nem tão remoto. “Ela a pega no colo com tanta facilidade que ela acha que deve ter se transformado numa das bonecas de trapos que faz para as crianças brincarem” (idem, p. 127): abayomi.
Espaços de poder que justificam a inexistência de um racismo reflexo. “Aqui há algo mais em jogo do que a simples escravidão, meu irmão. A questão é quem será o dono da terra, da gente, quem deterá o poder” (idem, p. 145). Do final do século XVIII ao final do XX, a agilidade da escrita nos atravessa de imagens cruéis o ponto de equilíbrio. Sucessão de imagens: guerras de secessão. “Todo mundo conhecia alguém que estava indo para o norte, e todo mundo conhecia alguém que já estava lá” (idem, p. 304). Contemporâneo ao célebre discurso de Luther King para negros e negras americanos de norte a sul dos EUA, fragmentos de Gyasi resinificam aquele instante, senão vejamos:
Foi em 1964, durante os tumultos, e ela pedira que ele fosse se encontrar com ela na frente da igreja para ela poder lhe emprestar algum dinheiro […]. Apenas semanas antes, o departamento de polícia de Nova York tinha matado a tiros um garoto negro de quinze anos, um estudante, por praticamente nada. Essa morte tinha dado início aos tumultos, lançando rapazes negros e algumas mulheres negras contra a força policial (idem, p. 384-5).
Talvez esta obra seja também um romance de memória. Talvez se encaixe em alguma outra classificação, uma vez sejam todas absolutamente arbitrárias. “Tão velha, diziam, que conseguia recitar toda a história de Gana de memória” (idem, p. 392). Esta foi uma leitura dolorosa. Não a primeira, nem a última. Uma dor necessária. O fecho da história liga as duas pontas da narrativa. Marjorie e Marcus. “Marjorie assentiu enquanto a avó pegava sua mão e ia andando cada vez mais longe para dentro da água. Esse era seu ritual de verão, sua avó fazendo com que se lembrasse de como encontrar o caminho de casa” (idem, p. 396).
REFERÊNCIA
GYASSI, Yaa. O caminho de casa. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.