Bruno Pinheiro Rodrigues se tornou professor e ferrenho pesquisador depois de uma vivência na juventude de militância cultural nas artes urbanas, como front man da banda Tiasques e do projeto Operação Cavalo de Troia. Sempre esteve a favor das causas humanistas, dos excluídos. Bruno estuda e pesquisa no sentido de reparar a história dos movimentos sociais mato-grossenses e brasileiros, notadamente do período escravista, com foco nos movimentos onde assomaram histórias silenciadas de verdadeiros guerreiros da resistência. A história sempre foi contada pelos vencedores e isso silencia os ditos derrotados, mas não é bem assim, uma história de resistência nunca é derrotada, ela permanece, no caso dos negros, contada de forma oral, com rara documentação, de geração para geração, dando vida a outras formas de luta e que servem de inspiração para as gerações que se sucedem.
Depois de lançar em 2018 “Paixão da Alma: o suicídio de cativos em Cuiabá (1854-1888)”, agora é a vez de “Homens de ferro, Mulheres de pedra”, nesta sexta-feira, 29 de novembro Bruno Pinheiro Rodrigues lançará o segundo livro sobre escravidão
em Mato Grosso, no auditório da Associação dos Docentes da UFMT (Adufmat), O livro aborda a história de dezenas de homens e mulheres que resistiram contra a escravidão, desde a costa do continente africano até a região andina, passando por Mato Grosso. Em suas páginas o leitor se vê diante de histórias como a de um grupo de escravizados que sequestram um navio negreiro e retornam à África nos anos 1700; de um africano chamado Sebastião que travou uma luta feroz contra indígenas Paiaguás que atacavam uma monção que rumava a Cuiabá, foi mantido e levado vivo pelos indígenas; histórias de diversas fugas da escravidão iniciadas na Cuiabá escravista, especialmente aos países vizinhos; um capítulo sobre o maior quilombo da história do Mato Grosso, o Quilombo Grande e a sua rainha, Tereza de Benguela; e até mesmo a análise de uma insurreição urbana (completamente desconhecida no Brasil) organizada por cativos que haviam fugido do Mato Grosso em Santa Cruz, atual Bolívia.
Bruno hoje é professor universitário e este livro é uma adaptação de sua tese de doutorado. Ele projeta o fechamento da trilogia para 2021.
Em um momento de desmonte de políticas públicas, desvalorização das lutas sociais, das universidades públicas, de perseguição a grupos sociais como LGBTs, indígenas, negros, encolhimento dos espaços de manifestação e atuação, passa a ser mais que necessário encontrar formas de resistir, com arte, cultura, mobilizações e organização popular nas mais diversas instâncias. Esse trabalho do Bruno faz parte dessa resistência cultural, necessária e urgente que é preciso empreender para poder registrar a história com outros olhares.
Na apresentação do livro, Bruno faz considerações importantíssimas para contextualizar a obra.
Nossa jornada começou em 1770, na floresta densa localizada no vale do rio Guaporé, fronteira entre os atuais Brasil e Bolívia. Lá tomamos nota sobre Tereza de Benguela, descrita como rainha do Quilombo Grande, que mesmo diante da iminente queda, se rebelou de maneira triunfal. Dizem as fontes disponíveis que após a captura, foi tomada por uma poderosa fúria e paixão. Amuada, recusou-se à ingestão de alimentos e, assim, encontrou a própria morte.
Descrita por cronistas ora como governante de “mãos de ferro”, ora como dona de atributos comparáveis a grandes rainhas da história da humanidade, tais como Cleópatra ou Palmira, Tereza de Benguela foi um ponto de partida singular para entender a história de outros milhares de africanos que atravessaram o Oceano Atlântico e foram levados para fronteira oeste da América portuguesa nos anos setecentos, a fim de assegurar as posses portuguesas e de viabilizar a exploração do ouro.
Quem era Tereza de Benguela para além do olhar frio do colonizador? Quais conhecimentos políticos, culturais e econômicos trazia consigo, juntamente com todos os outros africanos embarcados do porto de Benguela ou de outras partes da África? Por que os habitantes do Quilombo Grande devotavam tanta disciplina e obediência ao comando de Tereza? Por que a presença de indígenas? Como e por que foi possível a longevidade de tantas décadas de existência do quilombo na região, documentalmente datada de 1730 a 1795?
Essas e outras indagações nos levaram a percorrer um itinerário de cerca de 10 mil quilômetros, do continente africano ao Alto Peru (atual Bolívia); a caminhar entre 1720, ano da primeira estimativa sobre o comércio e transporte de escravos para o Mato Grosso, a 1809, ocasião em que uma conspiração tramada por negros fugidos dos domínios portugueses, escravos e indígenas foi descoberta em Santa Cruz de La Sierra.
Durante todo este itinerário nos foi possível conhecer histórias de busca por liberdade extraordinárias, como a dos africanos que, transportados em navio negreiro que saia de Angola em 1760, tomaram a embarcação, assassinaram quase toda tripulação e desviaram a rota para os domínios do chefe africano Dembo Manicembo, que os abrigou contra os interesses portugueses.
Em um determinado momento das pesquisas, a história e memória da rainha Ginga também se fez presente. Ela, um dos maiores símbolos da africanidade e anticolonialismo, é personagem central para entender a resistência à presença portuguesa e as numerosas dificuldades para organizar o comércio de escravos na África Central-Ocidental, somente possível por meio de “guerras justas” ou alianças com chefes locais.
A pesquisa histórica e bibliográfica ainda nos levou ao conhecimento dos “temíveis” povos Jagas e, principalmente, do que eram e significavam os “quilombos” entre os povos que habitavam Benguela e o seu sertão – a saber, campo de formação e iniciação militar. Tendo em mãos essas informações, nos foi possível olhar para o Quilombo Grande, nosso ponto de partida, de outra maneira. Os africanos que lá estavam, em contatos interétnicos com povos indígenas que habitavam a região, não era papéis em branco; traziam muita história e conhecimentos de ordem econômica, política e cultural, fundamental para luta pela vida além dos grilhões.
Ao longo do itinerário outros sujeitos ocuparam espaço nas páginas que compõem o livro. É o caso de Sebastião de Benguela, que transportado para o Mato Grosso em 1733, entrou para as páginas da história ao travar um violento combate com indígenas Payaguás que atacavam a monção que o levava, derrubando vários adversários e arrancando espanto e admiração dos luso-brasileiros presentes.
Igualmente, digna de nota é a história do negro Félix, que após ter fugido para América espanhola com outra cativa, casou-se. Contudo, foi capturado e enviado novamente ao Mato Grosso, a pedido do governador. Não tardou e Félix fugiu novamente. Os registros oficiais indicam que havia partido ao encontro da esposa e continuado a fuga para lugares mais distantes, onde pudesse finalmente descansar em liberdade.
O outro lado da fronteira também é repleto de histórias instigantes. Em Santa Cruz de La Sierra, palco da conspiração de 1809, encontramos entre os conspiradores Antonio Gomes, que fugido da América portuguesa, tomara parte do conluio que pretendia tomar a cidade. Preso e ameaçado com a devolução aos domínios portugueses e escravidão, em sua defesa lembrou que já havia até mesmo lutado ao lado da coroa espanhola contra indígenas. Em outras palavras, mais uma história fascinante de alguém que saiu de um território na condição de escravo, tentou recomeçar a vida em outro lugar e tomou parte de várias maneiras dos acontecimentos históricos do seu tempo.
As demais histórias desses “homens de ferro” e “mulheres de pedra”, deixaremos o leitor descobrir por si mesmo. Acrescentamos apenas que este estudo está em sintonia e é sensível com diversas tendências de pesquisa mundo afora, especialmente pelo esforço de dar voz a quem costumeiramente foi silenciado nos documentos que registram a história. Nesta obra são protagonistas das suas próprias vidas as dezenas de cativos fugitivos que encontramos no longo itinerário analisado, os quilombolas articulados com indígenas e assenzalados, assim como negros evadidos aos domínios espanhóis, que livres, tornaram-se conspiradores. Em suma, esperamos que o leitor possa viajar conosco na magnitude destes sujeitos, mas principalmente sentir a força e paixão que, apesar dos séculos, ainda insiste em ecoar.