Quanto mais leio mulheres, mais e melhor compreendo o que seja esse escrever com o corpo. Sheila Smanioto, Giovana Madalosso, Ana Paula Maia, Carola Saavedra, Marília Arnaud, Maria Valéria Rezende, Tércia Montenegro, Luisa Geisler, Socorro Acioli, e muitas, mas muitas outras que não caberiam aqui sem deixar este texto enfadonho. Acontece que “O corpo interminável”, de Claudia Lage é dessas escritas que demarcam na pele a questão da autoria e o substrato da escrita que queima para além da epiderme e sangra onde coagula profundamente um advérbio qualquer.
Depois da leitura, eu costumava escrever alguma coisa. Era uma necessidade, sobre as palavras lidas colocar as minhas, mas nunca imediatamente, meu corpo precisava de um tempo, o tempo necessário para lidar com tudo, o tempo para agir, só depois, quando as palavras saíam do papel, tomavam outro rumo, eu anotava o que tinha restado (LAGE, 2019, p. 22).
O que resta do processo criativo de uma escrita ganha contornos decisivos depois de muitos e muitos cortes. E Claudia os faz muito bem, de maneira que os andaimes da construção só são visíveis (se é que os são) se olharmos com muita delicadeza e precisão para o conjunto. Para mim está clara a imagética da obra, a riqueza de elementos fílmicos.
Melina e Daniel leem o mesmo livro na biblioteca, em horários alternados. Ela, pela manhã, ele às tardes. Até que se encontram e resolvem lê-lo juntos. “Às vezes, eu tentava anotar alguma coisa, ali mesmo, no calor da hora, mas a ponta do lápis mal levantava do papel, eu apagava o que havia escrito. Melina não escrevia nada, nunca tinha uma caneta ou caderno” (idem, p. 23).
Começa uma história de amor por dentro de outra, de ausências repletas de amores, embora qualquer maneira de amor sempre valha a pena. “… você está preocupado, não é só ordem, é mesmo amor, outra autoridade” (idem, p. 33). Claudia deixa algumas pistas para o leitor, mas sem resolver a trama, ou facilitar a vida do leitor quanto ao acompanhamento. “E, principalmente, tenho me perguntado todas as vezes em que abro a gaveta e a leio, por que não jogo fora uma sentença tão pessimista, por que não descarto essa ideia de que é impossível habitar o mundo?” (idem, p. 35).
Daniel e Melina repassam o histórico de seus pais e o envolvimento dos mesmos no golpe de 1964, e em seus desdobramentos, sobretudo no governo Médici. Mas e a foto da mulher morta, nua, a que a narrativa volta várias vezes?
Essa sua máquina é terrível, balbuciou, acendendo um cigarro, espalhando a fumaça pelo ar, papai tem muitas preocupações, não vamos aborrecê-lo com bobagens, e guardou as fotos numa pasta, a pasta numa gaveta, a gaveta num armário, o armário à chave (idem, p. 64).
Papai e suas muitas preocupações, resposta sintomática de uma mãe que costuma jogar para a gaveta (inconsciente) o que deve ser olvidado, aquilo a que não se deve dar ouvidos. “A verossimilhança é uma armadilha, tão fácil nos emaranharmos. Nada parece mais real do que a leitura de uma página, mas nada se desfaz tanto ao se voltar ao mundo. Nada se revela tão elaborado e artificial quanto essa organização de palavras” (idem, p. 72).
A referência anterior, à página 64 amplia a referência da máquina fotográfica à própria máquina da repressão, da qual o referido pai é parte integrante (informação quase que (re) velada no texto). As distâncias, depois disso tudo, ganham força e vigor pela metade da história. “Não me assustei, quando em vez de ver Alice, a menina do desenho ou do livro, vi a mim mesma, a moça que enxergo no espelho” (idem, p. 97).
Anoto em meu livro (já que o comprei, não o li em nenhuma biblioteca), à página 99 que a palavra espessura me dizia mais sobre o que lia, do que densidade, embora pareçam similares. E em [corpos], deparo-me com nova definição de verossimilhança que me aguça os sentidos para a construção do roteiro da escrita de Lage, a que me pego observando, tentando adivinhar o que me resta da leitura:
“… a verossimilhança só existe no mundo irreal, é construída com planejamento, um conflito, uma ação, consequência, um desejo, um movimento, tudo pensado, medido e assim nasce o mundo que não existe” (idem, p. 109). Leio, logo existe! E existe porque “o corpo pode continuar, uma árvore que afunda sem raízes” (idem, p. 127), e espalha sua mineralidade pelos vasos condutores de alimento para os galhos que dão vida a copas maravilhosas.
O final se aproxima e como quem blefasse por 171 páginas, ela arremessa uma pedrada. “Alguém veio e tirou uma foto” (idem, p. 172). E depois outra: “Havia mais nas coisas da mãe de Melina: um certificado de curso de fotografia do exército, o nome do pai como aluno” (idem, p. 174). Está lá o corpo estendido no chão. Por fim, o golpe derradeiro: “O avô cuidou do menino, com a ajuda da vizinha. O avô tinha recomposto um fio: a filha sumira de casa grávida de poucos meses (não tinha barriga). Foi para algum lugar (onde) onde passou a gravidez (como) e teve o filho (onde quando como)”. (idem, p. 180).
Onde, quando, como, por quê; perguntas básicas para o desenvolvimento de qualquer trama, mas cujo resultado depende muito de quem está por trás das teclas do computador. Em se tratando de Claudia Lage, parece que o melhor mesmo seria levantar a plaquinha de claquete final.
REFERÊNCIA
LAGE, Claudia. O corpo interminável. Rio de Janeiro: Record, 2019.