Ramon Carlos*
Após um ano resolvi escrever novamente. Parei de escrever após dois livros meus (escrevi ambos ano passado) serem descartados pelas editoras (ano passado e nesse também). Não parei de escrever somente por conta disso, foi um conjunto de fatores, dos quais ressalto o descaso e a estafa. O maior erro de um grande escritor é ele crer ser maior do que somente um grande escritor, mas não sou um grande escritor, apenas gosto das folhas em branco, são minhas inimigas mais leais.
Bem, estou de férias há dez dias, e para localizar vocês hoje é quarta-feira, cheguei em casa horas antes, desde sexta-feira estive na residência da minha namorada. Esse conto começa ontem, isso porque somente ontem resolvi arrumar um dente totalmente preto, que por algum motivo torpe decidiu latejar.
Na terça pela manhã, enquanto os barulhos da cidade assumiam seus postos incomodativos:
– Seu menor problema é um dente preto doendo – disse ela antes de bebericar o café preto e tragar um cigarro. Disse isso com um desdém grandioso, enquanto olhava para o céu azul assumindo seu posto indecente. Mantive-me sentado com as pernas cruzadas, sugando o ar com a parte esquerda inferior da boca para ter aquele prazer de dor, que só um dente dolorido é capaz de proporcionar.
– Para de fazer isso! Ela prosseguiu, sem olhar pra mim, seus olhos permaneciam contemplando toda aquela besteira da terra girando, das nuvens desmantelando com o vento, encarando o ócio da vida moderna sem sentimentalismo. Logo teria que se vestir e colocar o uniforme de trabalho, sem dúvidas ela preferia ter um dente preto latejando, mas eu estava de férias e um mínimo de compaixão matinal merecia. Fui até a geladeira e voltei, sentei e cruzei as pernas.
– Quais seriam meus outros problemas? Indaguei abrindo uma lata de cerveja. Dei um gole encaminhando o líquido para os dentes inferiores do lado esquerdo, só pra doer aquele maldito podre. Acendi um cigarro enquanto ela entendia minha pergunta, parecia estar mais interessada no barulho de uma máquina longínqua que assumia seu posto filha da puta.
– Ouviu minha pergunta?
Bebeu mais café, não olhou pra mim.
– Quer mesmo falar dos seus problemas? Perguntou-me enquanto uma luz de sol amarela e tímida aparecia na varanda.
Não era muito calor ainda, somente uma brisa balançando as roupas penduradas no dia anterior. Eu vestia a mesma roupa há cinco dias e quase nada me incomodava naquela hora, somente a pergunta e aquela coisa negra palpitando em minha boca, então percebi que no momento só queria me livrar de tudo, simplesmente pelo fato de levar a vida como um reduto de incompatibilidades, algo como um maquinário sem óleo, ou melhor, um testículo vazio. Posso dizer uma monotonia sistematizada fora do alcance real dos meus problemas. Levantei e fui aquecer um pouco o cabelo em sintonia com o sol, apoiando-me na cerca da varanda, observando tudo com o cinismo de Eclesiastes. Quero andar entre os mortos, ainda, quero pessoas discutindo dentro do ônibus, o atraso, boas pessoas miseráveis. Quero o crime e o castigo, quero o belo e sublime, quero tempo pra ler Dostoiévski. Ela odeia tudo isso, prefere o glamour mesmo admirando Eclesiastes correndo atrás do vento.
– Não vou morar com você – já disse.
– Azar o teu – ela respondeu.
– Morar com você seria como trazer a carne pro churrasco.
Somos o que há de pior, um conjunto diário de sentimentos entrelaçados. Nos odiamos ao mesmo tempo que nos abraçamos na hora de dormir. Fodemos bêbados para ninguém ter culpa. Somos o terror da humanidade, somos o amor pregado com parafusos, podemos girar, mas nunca se soltar. Nunca seremos diferentes que ninguém, seguiremos nossa doença paralela e conhecida.
Cinco minutos depois desisti do sol e sentei ao seu lado, lhe dei um beijo na testa e ela reclamou dos meus lábios gelados por conta da cerveja. Acendi mais um cigarro e falei:
– É melhor ir trabalhar.
– Eu sei meu horário.
Suguei o ar, uma sensação de derrota deliciosa e maliciosa. Bactérias contra mim, engordando por mim, toda aquela safadeza em um contraste totalmente indigno. Suguei, suguei, suguei…
– Vai parar com isso?! Esbravejou com uma face taciturna – Quer o telefone da dentista que fez meu canal?
– É bonita?
– Samanta o nome dela, se quiser o telefone fala logo que vou procurar. Já estou atrasada.
– Pierre-Paul Riquet sim, sabia fazer canal.
– Ein?
– Encontre o número da Samanta.
Lá pelas dez horas, depois de lavar a louça dos dias anteriores e recolher cerca de cinqüenta latas de cerveja espalhadas sentei-me em um banquinho de madeira e comecei matar formiguinhas na mesinha em forma triangular da cozinha. Suguei, suguei, suguei…Vou parar com isso? Ainda não, suguei, suguei, suguei, e as formiguinhas todas assustadas carregavam o máximo de açúcar mascavo que conseguiam, trilhando novas rotas de evacuação em massa. “Ei, que tamanduá é esse que não suga nenhuma de nós? (Suguei, suguei, suguei) Apenas mata por prazer! É narigudo, porém suga com a boca, que coisa estranha!
Você nunca saberá o que é loucura preocupando-se com ela.
“Samanta – 3323 3333 é bonita sim, pense bem, sou capaz de fazer um canal do dente ao intestino. Beijinhos, te amo”. Esse era o bilhete deixado, eu sabia que ela seria capaz de morrer por mim, e seria mais uma morte inválida.
“Debaixo das cobertas, só com a cabeça de fora eu ria do seu bafo estranho, um cheiro metálico e enferrujado. Ela disse “São meus pulmões podres”. Eu ria porque era gostoso, enfeitiçava o câncer da minha existência. Eu disse em meio aos risos “Você está podre mulher”, e uma lágrima do seu olho direito desceu em ziguezague até a boca. Eu disse “Não tema a podridão”. Então ergueu a coberta, e nesse instante imaginei um feto em decomposição em nossos pés. Torceu a boca para baixo chorando compulsivamente. Eu virei de costas para ela, rindo ainda mais, e completei: Dá próxima vez que peidar toque o sino antes”. Isso que me veio à mente.
– Clínica odontológica, Isis, bom dia!
– Quem?
– Isis.
– Quero marcar uma consulta com a Samanta, Isis, bom dia.
– É canal?
“Pierre-Paul Riquet sim, sabia fazer canal”.
– Não é canal, eu acho, Isis, bom dia.
– Bom dia. Mas a doutora Samanta só faz canal.
– Bom dia. Ela não pode fazer uma avaliação pelo menos? Não sei se preciso fazer canal.
“Pierre-Paul Riquet sim, sabia fazer canal”.
– Qual seu nome?
– Ramon, bom dia.
– Bom dia Ramon. Infelizmente a doutora Samanta só atende pacientes que necessitam fazer um tratamento de canal. Temos outras doutoras aqui na clínica capazes de lhe atender.
– Tenho um dente preto.
Suguei, suguei. “O tamanduá continua por aí. Evacuar!”
– Dói?
– Dói sim Isis, bom dia.
– Quer marcar uma avaliação com outra dentista?
– Qual o valor de uma limpeza?
– Um dente preto geralmente precisa de muito mais que uma limpeza.
– Qual o valor de uma limpeza?
– R$ 170,00.
– Vou pensar Isis, tenha um bom dia.
– Tudo bem, você também.
Eu queria Samanta e um canal do dente ao intestino. Basicamente isso é uma pulga na máquina de lavar ou um peido na geladeira. Refleti por uns instantes e era óbvio, onde eu estava seria fácil encontrar um dentista com um preço justo, pelo menos em uma limpeza. Suguei, suguei, suguei e decidi tomar banho, descer o morro e explorar. Tirei a cueca manchada com uma borra em curva do tamanho de um louva-a-deus, e nem preciso dizer quais eram suas preces. O estranho foi que ao observar a cueca, pude perceber mais identidade do que quando retiro as meias. Não que meu cu tenha mais caráter que meus pés, longe disso, mas é algo a se pensar.
Caminhei, dobrei na esquina de um bar, caminhei mais um pouco, virei à direita, 200 metros depois parei pra acender um cigarro e sentar num banco. Suguei e não senti nada, nem mesmo dor, coceira ou prazer. Como eu havia lido em um livro, não era a inteligência que privava a felicidade e sim a imaginação. Eu estava imaginando coisas absurdas, até que um senhor sentou no banco e começou coçar os tornozelos. Ele usava um óculos escuro, uma boina, tinha a barba rala branca com fiapos metade brancos e metade negros, seria como meu dente se restasse algo branco nele. Pensei em soprar a barba do velho pra ver se doía, coçava ou lhe dava prazer, mas não fiz, traguei o cigarro enquanto coçava sua sarna. Suguei, suguei, suguei, junto com a fumaça, me atrapalhei, me afoguei, e não senti nada além de arrependimento. Tossi tanto que me senti no dever de coçar os calcanhares também.
– Acho que lhe passei sarna. Bom dia – ele disse com um olhar desconfiado mas ao mesmo tempo alegre, querendo um papo qualquer enquanto sossegava suas pulgas.
– Tenho um dente preto, sarna me faz rir. Bom dia. Cof Cof Cof…suguei, suguei, suguei.
– Nem tenho mais dentes. Tenho medo até de rir, essa merda de dentadura vive caindo, se eu rir minha chapa pode ser multada por excesso de velocidade.
– Bem, estamos na mesma, se eu rir faço um eclipse.
Rimos ambos de boca fechada e coçando os pés. Decidi ser direto e perguntar onde eu encontrava um dentista pela redondeza.
– Depois daquela esquina ali – apontou com o indicador – vire à esquerda, é o dentista da minha neta. É um picareta.
– Vou lá.
Cocei os tornozelos, “Cof, cof”, suguei, suguei.
– Acho que meu dente me dá tosse.
Ele somente coçou a sarna, depois ergueu e abaixou sua boina, como um sinal de positivo. Segui as instruções sugando, tossindo, tentando inventar uma coceira nos pés, ou no dente, mas parecia tudo impossível, eu estava anestesiado, meu corpo nada queria comigo.
“Odontologia Sorriso Solto”. Subi as escadas, abri a porta, dei de cara com um bebedouro e uma máquina de café preparada, esperando qualquer um. Logo na minha direita uma secretaria loira e gorda sorriu, atrás de um balcão de mármore cor dente preservado.
– Bom dia – ela disse.
– Bom dia – eu disse. E sentei numa poltrona cor dente de leite bem perto do bebedouro e da máquina de café.
– Posso ajudar? Ela perguntou e sorriu novamente, com seus dentes perfeitos, algo como se precisasse estar ali.
– Tenho um dente preto. Pode me ajudar?
– O doutor Ricardo pode fazer uma avaliação sem compromisso dos seus dentes e dar o orçamento.
– Ok.
– Preciso que responda esse formulário antes de tudo e me de um documento para o cadastro.
Alcancei minha identidade e peguei o formulário junto com uma caneta. Sentei na poltrona confortável para preencher. “Responda S para Sim e N para Não”. Lembro de poucas perguntas:
(S) Fez tratamento médico nos últimos meses.
(S) Alguma alergia a alguns medicamentos. “Quais?” Todos.
(S) Possui diabetes, hepatite ou algum problema gástrico.
(S) Portador de HIV.
(S) Fumante.
(S) Ingere bebidas alcoólicas. “Quais” Todas.
(S) Está grávida
(S) Toma algum anticoncepcional.
Que nota você daria para sua última consulta odontológica? Especifique.
R: 0. Tenho um dente preto.
– Acabei – eu disse pra gorda sorridente – e alcancei o formulário.
Dentro de poucos minutos ouvi:
– Ramon?! Um cara de barba feita me chamava.
Apertei a mão dele e entrei no consultório. Sugando, sugando, sugando, senti coceira nos calcanhares, mas era apenas nostalgia. Sentei naquela cadeira estranha e odiosa. O cara entrou cheio de pose, como se eu precisasse dele, como todos os responsáveis pela saúde são, impondo poderes sobre as feridas.
– Bom dia Ramon, meu nome é Ricardo, estou aqui para fazer uma avaliação sobre seus dentes, mas já posso adiantar que sem uma radiografia fica impossível avaliar perfeitamente o estado da sua arcada dentária.
– Tenho um dente preto. Bom dia.
Explicou-me coisas que nem liguei, apenas pensei que todos eram iguais, queria apenas o valor de uma limpeza.
– Vamos tirar umas fotos dos seus dentes, depois conversaremos.
– Ok.
Plic, Plic, suguei, suguei, “Tente não fazer isso enquanto tiro as fotos”, Plic, Plic, um aparelho desgraçado me deixando de boca aberta e tirando fotos das minhas bactérias.
– Pronto – ele disse após uns dois minutos – Agora vamos falar sobre seus dentes. Seu sorriso é muito bonito, perfeitamente encaixado. Veja bem – ele disse apontado para uma televisão com meus dentes – seus caninos são perfeitos, suas pontas direcionam exatamente na divisa dos dentes inferiores.
– Au au.
– Oi?
– Desculpe, tenho caninos não adestrados.
– Ah! Sei, cuidado que eles podem morder sua língua.
– Ou tua orelha.
– Tirando esse dente preto – apontando para a televisão – seus dentes parecem bons, mas sem uma radiografia não posso afirmar. Preciso saber a profundidade das coisas, entende?
Ele deu sorte, não sou o tipo de pessoa que mata um homem e se redime com Deus, eu prefiro matar meu Deus.
– Olha só doutor, não tenho dinheiro para tirar fotocópias dos dentes.
– Então não posso fazer nada.
– Posso lhe fazer uma pergunta?
– Claro.
– Se lhe dessem como último pedido na vida escolher uma música para ouvir, pediria a mais longa ou a que mais gosta?
– Ein?
Saí pela porta, comprei 24 latas de cerveja no mercado e esperei o contra-ataque do formigueiro. Sugando, sugando, sugando.
Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: Mallarmargens, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha, A Bacana, Cidadão Cultura e Olho Vivo.