Em seu discurso após ganhar o Oscar pela sua atuação no filme Coringa, Joaquin Phoenix ecoou com suas palavras, a crescente necessidade de uma ação consciente e política, em prol do futuro de todas as espécies no planeta Terra. “Mas acho que o maior presente que me deu, e a muitos nessa sala, é a oportunidade de usar nossa voz pelos que não têm, seja falando sobre desigualdade entre gêneros, racismo, direitos LGBTQ+ ou indígenas, direitos dos animais, estamos falando sobre lutar contra a ideia de que uma nação, uma raça, um gênero ou uma espécie tem o direito de dominar, controlar, usar e explorar outros sem impunidade. Acredito que nos desconectamos demais do mundo natural, e nos sentimos culpados por ter uma visão egocêntrica, a crença de que estamos no centro do universo. Entramos no mundo natural, roubamos seus recursos. Nos sentimos no direito de inseminar artificialmente uma vaca e então roubar seu bebê quando ele nasce, mesmo que seus gritos de angústia sejam perceptíveis. E então bebemos o leite que é destinado ao bezerro e colocamos em nosso café e cereal. Quando usamos amor e compaixão como nossos princípios, podemos criar, desenvolver e implementar sistemas de mudança que são benéficos para todos os seres e ao meio ambiente.”.

Essas palavras sintetizam a luta pelo direito dos animais e do meio ambiente, e rompem barreiras socialmente construídas para que a ação nunca seja colocada em prática. Falar sobre o que fazemos à natureza e às outras espécies, ter consciência do poder de aniquilação do ser humano, que a tudo consome até exaurir a capacidade de regeneração do meio ambiente, e fazer mudanças reais e concretas, no agora, no campo da realidade, são desafios que cada vez mais pessoas se incubem. Foi pensando na barreira que afasta as pessoas do veganismo, seja por falta de informação, seja por falta de conscientização, que surgiu a página Vegano Periférico, administrada pelos irmãos gêmeos Eduardo e Leonardo, de 23 anos. A ideia era levar informação e mostrar que é possível ser vegano e morar na periferia, rompendo barreiras que só servem para afastar as pessoas da compreensão total do que significa consumir produtos de origem animal. Esse trabalho essencial desenvolvido pelos irmãos é tema desta entrevista para o Cidadã(o) Cultura.

- Quais foram os motivos que os levaram a tomar a decisão de não mais consumir 
produtos de origem animal e/ou que envolvem sofrimento de animais no processo? 
E contextualizando um pouco mais do histórico, como surgiu a ideia do 
“Vegano Periférico”?

Me tornei vegetariano e na sequência vegano por questões éticas. Quando tive contato com uma matéria, em 2015, sobre um caminhão que caiu com porcos no Rodoanel e através da internet, vários ativistas postando vídeos e comentando sobre o caso, fiz a minha primeira reflexão, porque tinha uma cachorra na época, e eu falei qual é a diferença entre essa cachorra que gosto tanto e cuido com tanto amor e carinho para aqueles porcos que estão sendo maltratados? O caminhão caiu em cima dos porcos, tinha pessoas jogando porcos na traseira do carro de forma desumana. A partir disso, eu falei que não ia mais consumir carne. E até engraçado que depois fui pesquisando, cada vez mais, e descobri que os porcos são tão inteligentes e até mais do que os cachorros. Realmente não consumo mais carne de jeito nenhum. E aí passou um tempo e tive contato com um ativista que estava andando com uma camiseta na rua escrito “leite é crueldade”. Como eu pesquisava tanto sobre veganismo e vegetarianismo, isso me fez pensar: “peraí, como assim?” e aí eu fui pesquisar sobre a indústria do leite e descobri que é uma das mais cruéis do mundo. Tanto a indústria do leite quanto a de ovos são as mais cruéis do mundo. Não consumo mais produtos de origem animal, leite, ovos, carnes, e para mim esse foi o basta. Na minha família e onde eu cresci, na região do Campo Grande no Parque Itajaí, eu não tinha contato com veganismo e vegetarianismo. Meu primeiro contato com veganismo, com a palavra, foi através de grafites, que falavam sobre questões de direitos dos animais de forma didática e clara, com palavras em português, com desenhos didáticos. E isso também fez muita diferença.

A página Vegano Periférico compartilha a alimentação dos dois irmãos, Eduardo e Leonardo, que demonstram como é possível ser vegano e periférico

Vou contar um pouco de como tive contato a primeira vez com o veganismo elitista, excludente, que infelizmente ao invés de abraçar pessoas, acaba excluindo, muitas vezes de forma inconsciente. Cheguei em um restaurante para conhecer mais sobre veganismo e vegetarianismo. Na época eu não conhecia e fui nesse restaurante, chegando lá, me deparei com comidas com nomes estranhos, o preço do estabelecimento era muito caro, o quilo era muito caro, a região que estava localizado era extremamente elitizada, uma região privilegiada. O que mais me chamou atenção foi ver pessoas nesse estabelecimento propagando a causa com camisetas com frases em inglês. Por quê? Porque eu queria entender o que as pessoas estavam transmitindo, queria entender aquela mensagem, então me senti completamente deslocado, desconectado daquele ambiente. Foi ali que me senti excluído pelo movimento a primeira vez. Joguei no Google a tradução de uma camiseta de um rapaz que estava lá e era uma mensagem muito importante e bonita. Eu falei “porra, se essa mensagem estivesse em português, qualquer pessoa entenderia e refletiria”, mas não, ela estava em inglês e hoje 95% da população não fala inglês. Quando propaga a causa dessa forma, você exclui pessoas. É meu ponto de vista. Foi como eu me senti. Sai desse estabelecimento, entrei no ônibus e escrevi meu primeiro texto de como pessoas periféricas, pessoas pobres se sentiram dentro desse estabelecimento. Escrevi meu primeiro texto sobre veganismo popular sem pensar em absolutamente nada, apenas para me sentir bem. Eu pensei em não me tornar vegano e me senti envergonhado de fazer parte desse movimento. Só que eu pensei: ‘esse movimento não é por causa dos veganos, é por causa dos animais, por causa de uma indústria que explora e usa animais como objetos, para vender restos de animais, pedaços de animais, derivados de animais, por lucro’. Não vou deixar de ser vegano porque ele está elitizado. A página é minha Eduardo e do meu irmão Leonardo. Só que o Léo demorou dois anos para se tornar vegano depois que me tornei. Ele esperou porque não conseguia comer nada de vegetais, por essa dificuldade ele não queria se tornar vegano para não colocar a saúde em risco. Quando mudou, foi radical, passou a comer muita verdura e fruta e se tornou vegano da noite pro dia. Estávamos em casa, sentados no sofá e ele abriu um livro de sociologia e estava folheando o livro que estava escrito: punk periférico. Aí eu falei: punk periférico? Me veio alguma coisa na cabeça: vegano periférico. É isso. Vamos criar uma rede social e vamos mostrar que é possível você ser pobre, periférico e vegano. É possível você mudar sua alimentação e estilo de vida, mesmo vivendo há mais de 20 km do centro. Foi quando ele falou bora, vamos criar sim. Na época eu não tinha um celular bom, ele pegou o dele e já criou a página. A página surge de uma necessidade, porque não tínhamos representatividade dentro do veganismo. Quando íamos procurar sobre receitas, produtos, alguma coisa do gênero, seja pela rede social ou através de sites, a gente só encontrava pessoas da classe média e da elite falando para classe média e elite, com produtos inacessíveis, alimentos caros e estranhos. Falamos que não era isso, não conseguíamos nos sentir representados e surgiu dessa necessidade de mostrar que é possível fazer um movimento popular, simples, mas com uma mudança no estilo de vida que a maioria vê que é radical. Só queríamos mostrar. O nosso único intuito para criar a página foi esse. Nunca tivemos pretensão, orgulho, nada disso. Foi de uma necessidade mesmo.

- Em suas postagens, recorrentemente falam sobre as barreiras que afastam as 
pessoas de uma alimentação vegana pela crença errônea de que é uma alimentação 
cara e de difícil acesso. Com o trabalho nas redes sociais, conseguem perceber 
mudanças neste sentido? Essas barreiras estão sendo quebradas?

Eu acho muito pouco ainda. Pouco para essas barreiras estarem sendo quebradas, porque ainda existe muita propagação de forma errônea. Existe muita gente propagando em inglês, propagando veganismo só como uma dieta. Não é que as pessoas são más e querem fazer desse jeito, mas fazem de forma inconsciente através do que viveram, da educação delas, do que aprenderam, do ambiente em que cresceram e propagam dessa forma. A maioria das pessoas que são de classe média, fazem parte de uma elite, e propagam através do mundo delas. Não vejo que está abraçando mais pessoas, mas vejo que nossa página tem mudado muito a forma que as pessoas enxergam o veganismo. Isso eu acho muito bom, que foi nosso intuito desde o começo, que as pessoas enxerguem que o veganismo pode ser muito mais do que ele é. E assim, me alongando, o que afasta as pessoas é a falta de representatividade, é uma linguagem inacessível, muitas vezes acadêmica e muito técnica, muitas vezes em inglês ou outras línguas, porquê? Muita gente não vê o veganismo como ato político, como movimento de luta pela libertação animal e humana, e acaba propaganda a causa como um status, um troféu, olha sou vegana, olha que legal sou vegetariano, sou melhor que vocês que comem carne, e dessa forma acabam afastando cada vez mais pessoas. Existe muita gente propagando a causa assim hoje, infelizmente. Mas também tem muita gente fazendo um trabalho popular, só que é minoria.

- Há um distanciamento devido à falta de informações sobre o veganismo e 
vegetarianismo. A que vocês atribuem esta dificuldade?

A forma que a classe média e a elite estão propaganda a causa, atribuo a isso. Porém não é só isso, porque mesmo quando a maior parte da população que é pobre e periférica, recebe uma informação, ela já foi sabotada muito antes. Seus pais estavam sem instrução e criaram esse filho sem instrução. O ensino público é uma sabotagem, a pessoa que sai do ensino publico já sai totalmente alienada, já entra no mercado de trabalho também em um emprego alienante, sem discernimento. Quando recebe uma informação, por mais que seja de qualidade, tem dificuldade de discernir, de associar, de assimilar, filtrar aquelas informações e escolher o que é melhor para ela. É um problema estrutural, mas também pela forma como as pessoas estão propagando. Por mais que seja difícil, nós pessoas da periferia, conseguirmos ter clareza e lucidez, devido ao nosso histórico, porque a maior parte da população passa por isso, a falta de representatividade, de pessoas falando de igual para igual, eu passei por isso, cresci sem pai, estudando em escola publica há 25 km do centro, e hoje sou vegano e vegetariano, então falta isso. Tem páginas falando disso com trabalho maravilhoso, mas é minoria. Fica difícil atingir a maior parte da população com pouquíssimas pessoas trabalhando para isso. Mas, vai mudar. Só tende a crescer.

A página Vegano Periférico compartilha a alimentação dos dois irmãos, Eduardo e Leonardo, que demonstram como é possível ser vegano e periférico
- Culturalmente o Brasil é o país do churrasco. Contudo, dados recentes 
demonstram que o vegetarianismo está crescendo por aqui. Como vocês percebem 
esse crescimento através das suas redes sociais?

É nítido. A página só tem dois anos e estamos com mais de 270 mil seguidores. É um numero bem expressivo. Só por isso você já consegue perceber como veganismo e vegetarianismo estão sendo falados e comentados hoje. Uma coisa interessante é que a maior parte dos nossos seguidores não são vegetarianos ou veganos, tem bastante gente que se diz mas não é a maioria. Isso é maravilhoso, porque muitas vezes quando postamos algo, o feedback que recebemos é de ‘nossa não conheço tal coisa, nunca tive contato com isso, com aquilo’. São pessoas que não são vegetarianas e veganas, que têm dificuldade e falta de informação.

- A crise climática anda lado a lado com a produção de carne, mas mesmo nas 
notícias sobre a emergência climática, pouco ou quase nada se fala sobre o 
consumo de carne e a necessidade urgente de mudarmos a alimentação em nível 
mundial. Na sua visão, qual é o maior empecilho para não separarmos uma coisa 
da outra, visto que são indissociáveis?

Em todo lugar que você vê falando sobre crise climática, as pessoas falam de tudo, menos do consumo do produto de origem animal. É logico que isso está associado ao paladar, ao vício das pessoas. Quantos ecologistas, ambientalistas, fazem churrasco para discutir sobre a crise climática? As pessoas sabem, mas não querem comentar sobre isso, porque se comentar terá que mudar, fazer uma mudança radical no seu estilo de vida, no seu consumo. Mas as pessoas sabem sim, claro que sabem. Por que não se comenta? Porque o consumo de produto de origem animal é que faz a roda da economia girar, é que faz o capitalismo funcionar. É mexer em uma estrutura muito grande. Reduz isso, reduz aquilo, problema é isso ou aquilo, mas não quer ir de fato no cerne do problema, na raiz do problema. Porque o consumo de água, a destruição do solo, a poluição, o aquecimento global, tudo isso está relacionado com a agropecuária, com o consumo de origem animal. Não se fala por conta do vício, do paladar, que a maior parte das pessoas que estão envolvidas na luta pelo clima, tem. É simples. E o lobby da agropecuária é muito grande. E isso influencia muito também. É um tema bem complexo.

Comentário

  1. Muito legal o trabalho dos irmãos, eles usam a linguagem que o povão entendi e isso fica mais fácil das pessoas tomarem consciência de quão mal faz ao meio ambiente a questão de se alimentar de alimentos de origem animal, as pessoas reclamam do calor, mais não procuram saber a verdade sobre o aquecimento global, tem que mudar a alimentação das pessoas, é questão de vida ou morte, sou vegana desde 1999, um grande abraço aos irmãos, boa tarde a todos.

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