Quem faz arte no Brasil nunca faz só.

A arte precisa do outro para se concretizar. Sem o outro, não existe arte, não existe cultura. É o outro que torna possível a criação, a realização, a produção, e a entrega de um conteúdo artístico. Sem o outro, a arte não alcança a realidade e não alcançando a realidade, não perdura, não existe, não resiste. Arte é resistência. Essa frase pode ser considerada clichê por ter sido massificada em nosso entendimento de como artistas e produtores culturais sobrevivem no Brasil. Mas ela é real. O clichê existe porque é um fato. E para resistir, também se precisa do outro.

Se fazer arte no Brasil é difícil, em Cuiabá, Mato Grosso, dizem que é impossível. Ainda assim, os artistas do cerrado, da terra mais quente do país, no coração do Centro-Oeste, seguem lutando, criando, resistindo, vivendo, fazendo, e transformando potência em arte. E o fazem através de uma rede de apoio e de afeto, que se ajuda, se consolida, se envolve e se engaja com os movimentos, propostas, projetos. É lindo de se ver porque quem trabalha com cultura sabe todo o esforço necessário para entregar uma peça de arte. É uma função tão dura quanto qualquer outra, principalmente por insistir na criação artística em um mundo capitalista onde todos temos preços etiquetados em nossas vastas folhas de currículo.

Quem faz arte no Brasil nunca faz só. E Karola Nunes sabe disso. O movimento que se formou para trazer ao mundo o videoclipe da música “Tá vendo seu moço?”, o primeiro do seu álbum “Somos Som”, é prova da necessária união entre as pessoas que criam e produzem arte.

Gravação do videoclipe “Tá vendo seu moço?” – Foto Fred Gustavos

“Eu sou daquelas que acha que é impossível fazer sozinha. Eu sou prova disso. Minha carreira, profissionalmente falando, enquanto compositora e atuante defendendo esse recorte da cena de Cuiabá, se dá quando a Larissa, minha companheira, resolveu trabalhar comigo. Antes de ela me dar a mão pra isso, eu estava tocando em barzinho, e não tinha muitas aspirações quanto à essa cena. Então, eu começo já tendo o apoio dela, da Karina Figueredo que produziu meu primeiro show, do Jan Moura que abriu espaço pra mim no SESC Arsenal, e de cara já percebi que o importante era o coletivo. Isso permeia meu fazer musical desde sempre e desde muito antes também. Meu primeiro trampo profissional foi com uma banda. Relutei muitos anos pra virar Karola Nunes porque apostava em bandas. Fiquei uns 10 anos nessa coisa de não querer usar meu nome porque achava que se usasse daria a entender isso, dessa coisa individualista. Hoje em dia entendo que meu nome é como se fosse uma fachada de uma loja e para essa loja acontecer muita gente tem que estar envolvida. Sou bem resolvida quanto a isso e tenho completa certeza que essa fachada só é possível por conta de todos os colaboradores que eu tenho”, conta Karola.

Gravação do videoclipe “Tá vendo seu moço?” – Foto Fred Gustavos

A ideia do videoclipe surge quando Pedro Brites, que assina a direção junto com Juliana Segóvia, busca Karola para propor a gravação de uma outra música. Mas, com a perspectiva de que não conseguiriam realizar aquele primeiro roteiro, no momento, partiram para a próxima opção, vista por Karola e Juliana, como uma forma de mandar uma mensagem política e necessária. A canção escolhida para representar a arte mato-grossense e propor um debate sobre diversidade, corpos, gênero e raça, veio com “Tá vendo seu moço?”. Juntos, passaram meses pensando e buscando caminhos para concretizar a ideia. Antes, a equipe formada era de apenas quatro pessoas. O número saltou para 20 envolvidos, o que demonstra a intensidade dessa troca e compartilhamento na cultura. As parcerias se expandiram, e o clipe ganhou patrocínio da Melissa, que doou pares de sandálias para o figurino.

“Decidi junto com a Karola que a música que pede o contexto político do país é Tá Vendo Seu Moço?, a partir daí ela compartilhou comigo uma ideia visual do que ela tinha pra essa música e me encaminhou a primeira referência que é um clipe do Filipe Catto – Um Nota Um, uma produção com pouca verba e performance do vocalista. Karola sempre gostou muito dos meus trabalhos fotográficos e quis eu trouxesse também a iluminação que eu já trabalho no projeto Soturno, onde coloco na imagem muitas luzes coloridas e corpos que questionam os padrões de beleza, de gênero e sexualidade. Nesse mix de referência comecei a descobrir outras que poderiam nos dar saídas práticas e reais do que nosso projeto poderia alcançar. Quando buscava isso, o cantor Criolo lançou o clipe da música Etérea que diz muito sobre as ideias iniciais que a Karola tinha. Agarrei essa referência e trouxe pras nossas possibilidades, começando a construir o roteiro que teria dança, performance e atuação”, divide Pedro.

Gravação do videoclipe “Tá vendo seu moço?” – Foto Fred Gustavos

Provocar reflexões era uma das missões do grupo, até pela questão política ser tão presente na música de Karola e além disso, trazer o protagonismo da produção cultural para as pessoas de Cuiabá: “Empreendemos essa perspectiva de valorizar a localidade e abrir uma discussão política e crítica sobre a constituição da equipe e do bastidor no audiovisual. Quem são esses sujeitos? As mais de 20 pessoas que realizaram esse videoclipe possuem extenso trabalho artístico na cidade, mas nem sempre obtém reconhecimento. A equipe em sua maioria é formada por “minorias”, que paradoxalmente é a maioria no Brasil”, explica Segóvia, que vai além:

“E pensando também na produção audiovisual, da participação dos negros, mulheres e LGBTQIA+, foram as primeiras pessoas a serem ainda mais perseguidas nesse cenário atual político e social. O Pedro é gay, eu sou lésbica, somos pessoas não brancas, eu me identifico como mulher negra, e é um protagonismo que está descolado do que é hegemônico no audiovisual, não só falando de Mato Grosso, mas de todo o Brasil. Quem realiza, produz, dirige, roteiriza, entre outras funções do cinema ou do videoclipe? Em sua grande maioria, são homens brancos, cis e héteros. Ser uma pessoa periférica, mulher, LGBTQIA+ e/ou negra não é um fator limitante para a potencialidade artística de ninguém, mas de protagonismo sim”, destaca.

Romper essa barreira que separa a produção artística do eixo Rio-São Paulo permeou as decisões da equipe, conta Segóvia: “Uma das preocupações também foi buscarmos elementos simbólicos regionais. Ter como locação a Casa Cuiabana, patrimônio tombado, significa isso. Propomos apresentar a localidade em diálogo com a perspectiva nacional, em termos de narrativa e produção. É uma grande questão por aqui sermos “à margem dos grande centros” e observamos que o que está sendo produzido “fora do eixo”, de outras regiões do Brasil, como Norte e Nordeste, está reverberando tanto nacional quanto internacionalmente. A realização do videoclipe traz esse potencial de provocação, sobre a valorização dos profissionais da cidade e abrir uma reflexão em relação à produção de conteúdo artístico crítico e político”, compartilha.

Gravação do videoclipe “Tá vendo seu moço?” – Foto Fred Gustavos

Para Karola, a política é indissociável da arte: “A existência é política. Acordar de manhã é um ato político, se eu não usar a arte para isso, não faz muito sentido. Acho que cada um tem seu papel e sua consciência, de como trabalhar e levar a vida, mas para mim, particularmente, enquanto cidadã pensante, eu acho difícil não aproveitar esse momento de fala para não mandar uma mensagem. Quando eu componho, eu tento compor alguma coisa que vá tocar alguém e chegar em alguém, não é simplesmente um descarrego de letras no papel, existe uma mensagem por trás disso. Entendo que chega para cada um diferentemente, por conta da subjetividade. Escrevo para falar da minha existência, lembrando que essa é uma existência política então não tem como dissociar”, aponta.

Gravação do videoclipe “Tá vendo seu moço?” – Foto Fred Gustavos

E o momento de censura e obscurantismo no país afloraram ainda mais esse potencial político e criativo: “É importante se fazer presente nesse momento de conservadorismo que estamos vivendo. Acho que mais que nunca precisamos bombardear a sociedade com espetáculos políticos, progressistas, temos que escancarar para a sociedade a existência desses corpos diferentes do padrão, desses gêneros diferentes do que as pessoas compreendem como o que tá valendo. Nunca foi tão importante falar sobre isso e escancarar a nossa existência. Sempre fui assumidamente gay, nunca tive problema de falar disso, mas nesse momento sinto a necessidade de levantar essa bandeira, que as pessoas olhem para mim e vejam uma cidadã gay. É isso. Enquanto vamos nos escondendo, disfarçando e não levantando essas bandeiras, os conservadores estão costurando as bandeiras deles, e querem reergue-las e nós não podemos deixar. A importância de colocar isso na tela e ser o primeiro clipe é dar um recado mesmo. Minha arte é politica, então se você não entendeu até agora, é hora de entender”, acrescenta a compositora.

FICHA TÉCNICA

Clipe:

Direção: Juliana Segóvia e Pedro Brites

Roteiro: Pedro Brites

Direção de Fotografia: Rosano Mauro Jr.

Assistente de Câmera: Marcelo Sant’Anna

Assistente de Iluminação e Efeitos Cênicos: Karina Figueredo

Gaffer: Jean Carlos ‘Batata’

Montagem: Juliana Segóvia e Pedro Brites

Color e Finalização: Marcelo Sant’Anna

Produção Executiva: Larissa Sossai

Direção de Produção: Luiza Raquel

Produção: Isabela Sanders

Direção de Arte: Amanda Nery Figueiredo e Fred Gustavos

Ilustrações: Hugo Alberto

Direção de Coreografia: Filipe Breno Vinhas

Dançarines: Filipe Breno Vinhas, Geovane Rodrigues e Lupita Amorim

Styling: Eduardo Solano, Einstein Halking e Hugo Alberto

Beleza: Álison Rangel

Still: Fred Gustavos

Making of: Júlia Muxfeldt

Música:

Música e voz: Karola Nunes

Voz poema: Mariela Lamberti

Arranjos de metais: Gustavo Ruiz e Amilcar Rodrigues

Baixo: Paulinho Nascimento

Bateria Rominho Moreira

Guitarra: Augusto Krebs

Synth e programação: Gustavo Ruiz

Percussão: Virgílio Ribeiro

Trompete, flugelhorn e bombardino: Amilcar Rodrigues

Produzido por Gustavo Ruiz

Mixado por Victor Rice no Estúdio Copan (SP)

Masterizado por Felipe Tichauer no Estúdio Red Traxx Mastering (FL EUA)

Gravado em 2018 no Estúdio Brocal (SP) por Gustavo Ruiz e Estúdio Well Ribeiro (MT)

Fotografia e projeto gráfico: Fred Gustavos

 

 

 

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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