Por Camila Cecílio*
antes de nascer mulher
era morta que eu estava
de olhos abertos
no berço lânguido da morte
enquanto a canção da vida ressoava
nas ondas magnéticas do infinito
onde homem algum pisa por ser
infinito o incognoscível de uma mulher
eu estava morta demais para saber
de peito e pelos mórbidos
não pulsava, não mexia
a boca cheia de palidez
não falava, não gemia
na voz altiva de mulher
eu precisava da morte
toda mulher que assim nasce
é porque foi necessário morrer
uma, duas, três — vezes que não conto
cair com duas facas nas costas
e um punhal cravado no coração
no fundo desmedido de uma limbo
expostas as tripas, o sangue a escorrer
achar que não há mais o que sangrar
a poça carmim, o tom da carne
não há estanque que segure
não há ferida que se cure
sem antes doer toda dor
sem antes deitar sobre a própria morte
rezar sem som para que
uma luz além-túmulo
um lusco-fusco no escuro
descortine o caminho do céu
para, quem sabe, descansar
nos braços do altíssimo
e descobrir que Deus também é mulher
e que, portanto — ou por não muito
compreende o dissabor de
às vezes estar viva e alheia
ao sabor desse mundo
mas não tem luz, nem lusco-fusco
no fundo desmedido dessa limbo
nem os braços tépidos do altíssimo
tem eu, pessoa física e ilógica
com as tripas espalhadas pelo chão
tem eu deitada em minha própria morte
a segurar a dor nos dedos avermelhados
a tentar me recompor
veia por veia, ligar os pontos
que me fazem ser quem sou
desconhecida, imensurável
mais uma que da morte ressurge
através das próprias mãos, ressurreição
das mãos, a vida renascida
sou eu viva
sou eu, mulher
.
.
[fevereiro, 2020]
*Camila Cecílio é jornalista e escrevedora das coisas de dentro da gente. Cuiabana, vive entre São Paulo e o interior do mato, onde encontra o fôlego e força necessários para continuar em busca de mistérios do viver.