Edelson Santana

Há pouco mais de três anos, teve um dia em que eu acordei mais feliz. É que a empresa mais famosa do mundo em aplicativo de transporte urbano começaria enfim a operar em Cuiabá. Na cidade em que pobre mesmo é quem não tem sequer um jipe pra rodar e o poder público prioriza empresas em vez dos cidadãos, o sistema de transporte coletivo é exclusividade de uma casta vista como inferior, composta por um contingente que vive sobretudo de ir e vir do trabalho, habituado a ser tão somente a força física que move o mundo das ocupações e resignado em sua condição desumana.

Talvez eu devesse ter me esforçado para ser mais um na multidão motorizada a disputar espaço nas ruas tortas da capital, como muitos não deixaram de me dizer. Até cheguei a tentar, mais de uma vez, mas para um adulto ainda hoje incapaz de assimilar por inteiro o código tácito que rege a vida, mais difícil ainda seria acomodar as regras de conduta na selva do trânsito.

Entrar em um carro para assumir o volante – quando eu o fiz – foi como se de uma só vez colocasse uma armadura e montasse um Rocinante em rodas e metal para cair no mundo em uma desajeitada batalha contra gigantes. Acelerador, freio, embreagem, câmbio, marcha, painel, seta, combustível, semáforo, placa, faixa, meio-fio, motos, gente, cachorro, a última notícia, a vida, boletos a pagar, pensamentos a mil, tudo ao mesmo tempo agora, impossível coordenar. Toda essa inaptidão só me levaria então à sina limitada de um cavaleiro literalmente andante e perdido na terra do sol.

Aí veio a Uber para amenizar todo esse drama individual. Facilidade de acesso, motorista educado, bom preço, ar-condicionado, água, balinha, civilização… Nunca havia sido tão fácil ser gente digna por tão pouco. O 301, que já saía lotado do Jardim Vitória, quem diria, estava perto de ser uma realidade distante, e logo eu chegaria ao status de usuário vip em nível platina do aplicativo, um fidalgo de nosso tempo.

Mas a servidão não me serve. Longe de ser gregário, minha formação como sujeito, porém, é constituída também pela experiência do próximo. Tudo o que penso, digo e pondero é sempre atravessado pelo discurso de outro, é a pluralidade que me torna o que sou, único. Sendo assim, não dispenso uma conversa, embarco no banco da frente, vou de carona e encaro a viagem como um bom observador participante.

Até o momento, foram mais de 500 corridas apenas no aplicativo Uber, em diferentes cidades e até outros países, com motoristas diversos. Uns têm na plataforma a sua única opção de renda. Outros estão pela flexibilidade de horário, os mais jovens, estudantes ou concurseiros. Alguns simplesmente procuram ocupar as horas vagas de um tempo corrido. E tem aqueles que, além da grana extra, assumem em seus perfis que dirigem pelo desejo de ter o que fazer e com quem conversar.

Há os que se condicionam, num game viciante em busca da elevação de nível e obtenção de prêmios. Há os estrategistas, que atuam somente quando percebem condições mais favoráveis ao ganho. E tem os que apenas sobrevivem, com muito pouco tempo para pensar. Difícil retratar em palavras vidas inteiras no tempo instantâneo de uma curta viagem.

Foi pela interação com essas centenas de pessoas e, de uns meses para cá, por acompanhar a série “Diário de (mais) um motorista”, de Caio Mattoso, publicada aqui no Cidadão Cultura, que pude parar para reparar melhor as engrenagens que fazem girar todo esse novíssimo negócio. Percebi que, em nome de uma modernidade e uma inevitável adesão às novidades, muitas vezes para não sermos nós os obsoletos, a gente começa por ser presa fácil pela linguagem.

Novas terminologias reinventam as velhas relações de trabalho. Para dizerem trabalhadores, por exemplo, dizem parceiros ou colaboradores. E estes passam a ter como único direito a oportunidade de oferecer a sua própria força de trabalho. No campo de um empreendedorismo de liberdade relativa, pessoas humanas são controladas por plataformas digitais, em um parasitismo muitas vezes tão convincente que, em tempos de propalada crise do emprego tradicional, se traveste de uma relação socialmente harmônica.

Basta uma volta pelas ruas centrais de Cuiabá para ver a cada dia multiplicar o número de seres com suas bags coloridas ajustadas às costas, tartarugas ninjas de uma nova ordem a servirem senhores obscuros. É preciso realmente pensar a Uber. É preciso pensar a uberização e tantos outros neologismos, muitos ainda pouco entendidos e geralmente perigosos. As novas roupagens para atualizar primitivas formas de uma colonização exploratória que se repete com outras fórmulas e modifica as estruturas sociais nem sempre para melhor. É preciso urgentemente não deixar de pensar.

O trabalho continua sendo algo importante, sim, até porque qualquer um de nós sempre vai ter uma conta para pagar.  É, nas palavras de Hannah Arendt, uma atividade diretamente relacionada à própria vida, que assegura a sobrevivência do indivíduo e a vida da espécie. Não se pode, porém, perder de vista o seu valor social, um princípio constitucional estreitamente ligado à dignidade da pessoa humana, que garante ao trabalhador as condições mínimas para que ele não se torne uma máquina a serviço de empresas caça-níqueis.

No auge de um liberalismo econômico, vejo a mão regulamentadora do Estado, até o momento, agindo apenas em função de uma sanha arrecadatória, que burocratiza e onera ainda mais motoristas e usuários. Pouco se fala na responsabilização das plataformas digitais em questões relativas a segurança, bem-estar e, principalmente, garantias trabalhistas mais sólidas e justas aos seus “parceiros”.

À sombra deste mundo errado, só me restaria o esforço de reconquistar a sensação cômoda daquele dia em que acordei com a esperança de que os meus problemas nesta cidade sem mobilidade seriam resolvidos. Mas, triste de quem é feliz – especialmente se essa tal felicidade vem assim tão egoísta. Dias atrás, viajei na letra de um rock dos anos noventa da playlist de um uber bem camarada: “Se o país não for pra todo mundo, pode estar certo, não vai ser pra nenhum”. É preciso seguir com nossos protestos, ainda que tímidos.

 

Edelson Santana é jornalista e pesquisador de literatura em língua portuguesa

2 Comentários

  1. Que crônica excelente, oportuna, crítica, e que provoca a reflexão sobre atos cotidianos que se tornaram tão “banais” e corriqueiros, mas que estão revestidos com toda a lógica cruel do capitalismo.

  2. Edelson, grande escritor, refletindo na escrita o que ja se percebe nos papos do dia a dia. Sempre oportuno em suas observações. Esperando a sequência. Grande abraço.

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