Bate à porta um novo hóspede. Toques leves para avisar a sua chegada até então silenciosa. Na ponta dos pés para não fazer alarde. E assim, como quem não quer nada, chega e se instala. Nós, da distância de nossos confortáveis sofás e rotinas privilegiadas, não demos atenção. Silenciamos as notícias que chegavam do outro lado do globo apenas para continuar a nos mover neste mundo cada vez mais velozes. Sem olhar para o lado, para baixo ou para cima, só conseguimos ver o que está diante de nossos olhos, capturados pela atenção da tela branca que nos cega. Mas, quando devíamos parar e refletir, avançamos e rolamos pelo feed infinito, como se aquele aviso de um novo hóspede não pudesse nos alcançar.

Mas eis as maravilhas do mundo moderno, do neoliberalismo, do avanço que se fecha em si mesmo. Podemos seguir sem nos incomodar enquanto trabalhadores mantém a estrutura em funcionamento 24 horas por dia. A roda não pode parar. As bolsas quebram, economias ruem, nações se desintegram, pessoas se contaminam, adoecem e morrem. O colapso. O caos. Será que dessa vez ele atende pelo nome de coronavírus?

As primeiras mortes no Brasil aconteceram há pouco mais de 24 horas. A mesma vigília do relógio que guia carreiras e deliverys instantâneos agora contabiliza corpos. Um, dois, três. O número cresce exponencialmente. A tragédia se expande e rompe as barreiras físicas da China, do Irã, da Itália, da Coreia do Sul e de tantos outros países. Cada qual agiu à sua maneira para conter a ruína total. O gigante chinês registrou queda de 20% a 25% em sua produção e consumo. A extensão do dano social atrelado ao avanço do neoliberalismo são o efeito colateral da moeda capitalista.

Aqui, acostumados estamos com as comodidades do neoliberalismo. Nossas entregas são feitas a qualquer hora do dia ou da noite. Ao alcance de um clique: carros, comidas, roupas, sapatos, remédios, drogas. Quando veio a reforma trabalhista prometeram mais empregos com flexibilização de normas e leis para facilitar a vida do patrão, e nada disso se concretizou. Empregos rarearam, se precarizam e uma carteira de trabalho assinada virou artigo de luxo. Um aplicativo no celular pode ser sinônimo de conforto para você e de trabalho para muitos e muitos outros. Em sua maioria jovens, pobres, negros. O retrato da realidade brasileira.

De nossos sofás acompanhamos a avalanche de notícias e muitos podem entrar em isolamento social para evitar a propagação do vírus. Eu, Marianna, continuo indo ao trabalho a pé, para uma jornada reduzida de cinco horas diárias sem almoço. Volto pelo mesmo caminho que traço todos os dias. Viro da rua Santo Antonio para a Martinho Prado e logo depois do viaduto 9 de Julho, uma senhora me para. Não entendi o que ela disse naquele sol escaldante das 14h30, mas parei e perguntei. Ela começa a falar rápido como se tivesse medo que eu me afastasse. Abre a mochila apressada e diz que está vendendo pano de prato por 5 reais, 2 por 10. Percebo o peso que ela carrega e me entristeço porque não levo dinheiro físico comigo e ela não tem máquina de cartão. Peço desculpas e que ela se cuide, ela me pede pra ir com deus e agradece quando digo que logo na outra rua há movimento. Ela se apoia em sua bengala e se afasta com seus cabelos grisalhos. Uma senhora idosa, do grupo de risco, que não tem a opção de ficar em casa. Mesmo indo para rua, ela pode não vender nada e não ter o que comer.

Chego em casa e choro ao pensar no quanto sou privilegiada. Leio histórias sobre pessoas que acham que fazem muito quando pagam um uber para a diarista ir trabalhar, sem se preocupar nos riscos e na exposição daquela pessoa. Agora não há espaço para os nossos confortos e comodidades.

Trabalhadores autônomos e informais já são maioria. Em 11 estados do Brasil representam mais de 50% da mão-de-obra. É nessa mesma classe que se enquadra praticamente todo o setor cultural e criativo do país. Um número avassalador de pessoas que não sabem como irão pagar suas contas.

“Cadê as pessoas de São Paulo”, questiona um haitiano que vende suas frutas na rua. A maior cidade do país está esvaziada. As ruas quase desertas. O oposto do que se vê na rotina frenética diária.

Penso nas minhas amigas e nas minhas irmãs. Muitas pessoas vieram me contar que eventos estão sendo cancelados, um após o outro. Shows, peças de teatro, concertos, exposições, cinemas, museus, gravações. A precaução é necessária mas o lado que muitos não querem enxergar corrói o nosso senso de humanidade e comunidade. Amigos em um grupo de whats dividem suas experiências e impressões. O medo pelos pais, um é pintor, logo, autônomo, o outro trabalha limpando praças de alimentação em shoppings. Estão no grupo de risco. Estão vulneráveis e ficarão mais.

Ninguém pode dizer o que acontecerá, mas o fato é que antes de melhorar, vai piorar. Muitas perguntas, dúvidas, incertezas. A produção artística e cultural sofre um grande baque. Dançarinos não sabem quando vão receber. Suas apresentações foram canceladas. Gravações de filmes canceladas. Peças de teatro sem perspectiva de quando voltam ao cartaz. Equipes inteiras estão na rua sem saber qual é o próximo passo. Pequenos comércios e restaurantes vêem seus espaços vazios. A cada dia mais. A engrenagem do capitalismo engoliu a possibilidade de qualquer direito, de qualquer apoio social. O estado é mínimo e a desumanidade é máxima. Uns ficam em casa porque podem fazer home office ou porque estão estabilizados em seus trabalhos. Outros continuam a percorrer o chão quente, apoiados em suas bengalas, enquanto vendem pano de prato.

E você, se puder, fique no seu sofá. Lá fora, só deve estar quem não tem opção. E acredite, são milhões.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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