Por fauno guazina*
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” Bertolt Brecht
pra começar se imagine de frente para um rio que vc possa ver um longo percurso de suas águas, tanto do lado esquerdo quanto direito, imagine você na margem podendo ver a margem do outro lado, neste outro lado você também está lá, vendo o mesmo rio e sabendo que é você e podendo ao mesmo tempo ter as duas visões, ou melhor, a consciência das duas visões.
aqui começa nossa navegação divagação, imagine que de onde as águas vêm é o passado e pra onde as água vão é o futuro, note que não importa se esquerda ou direita, pois vc está dos dois lados ao mesmo tempo. neste contexto sua visão é divisão entre o que foi, o que é e o que será. onde vc está seria o presente.
neste ponto tudo é escorregadio, pois não há como deter o fluxo temporal, as águas nunca param, elas correm sempre e portanto o tempo ou o rio nunca são o mesmo, na sua frente o presente é continuo, mas ao mesmo tempo transformação, o presente é o que veio do passado e irá para o futuro. neste sentido o passado é também futuro, só que em posição diferente.
nadar é pensar a ilusão de viver, não se nada no tempo, se mistura a ele, como diluir pó em água, assim nos tornamos tempo, liquefeitos, carregados por correntes temporais, somos arrastados no fluxo e então passado e futuro não existem, só temos o agora. se fossemos agora estaríamos sempre, ser geralmente é estar, mas fingimos ser sob efeitos de não estar. misturados ao turbilhão das águas que nos arrastam, perdemos a referência de esquerda e direita, da onde viemos seria o atrás e pra onde vamos seria à frente?
vivemos sempre neste percurso do arresto das águas até aqui, que o que passou já sabemos e o que virá ainda é incerto. neste ponto do rio nada do que vemos tem referência exata, arrestados pelo fluxo deduzimos que a frente seria o futuro, mas o que podemos ver é o que ja sabemos, portanto é passado. o futuro são águas turvas de nenhuma certeza ou previsão, portanto este está atrás, pois não há como ver o que ainda não foi, em suma estamos de costas para o contínuo do tempo.
mergulhados diluídos misturados nadamos no nada, nem ser nem estar, nossa tentativa de rocha, fixidez inútil na liquidez da universalidade, tentar se segurar nos causa efeitos sintomáticos: excesso de passado causa depressão, excesso de futuro causa ansiedade. é difícil mas tentamos nos acorrentar num rio que, antes víamos passado e depois futuro, nos esquecemos que éramos nós a divisão e portanto nos tornamos seres temporizados, estares, neste sentido passado e futuro nem existem, são os fantasmas do agora.
nesta constante liquefação temos um agora em constante destruição… única ação do tempo é uma invenção destruição em eterno vice-versa, ironicamente somos e estamos o que estamos e somos por teimosia da memória, este fio de azeite, amniótico de nossos seres, que nos permite estar, carrega flutuante nossas partículas de passado, tão particular é o que nos define que por consequência pode ser reinterpretado, sendo assim multidimensional, paralelo, inconstante, feito real e efeito do irreal…
nesse afogamento temporal do presente nadamos naquilo que seremos no futuro, mas que já são águas passadas. ao nadar estamos sempre em passado, pois o que estamos agora é resultado do que ja fomos, nadar neste rio é sempre atuação da temporalidade, somos e estamos liquefeitos. o ser é atuação do agora memorizado em estar, memorizamos hoje para inventarmos um reconhecimento de nós se houver amanhã. agora estamos o que já fomos e seremos em breve o que estamos agora.
Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários. Heráclito
aqui, nestas águas turbulentas, o passado só existe enquanto existe a persistência da memória, pois tudo que somos são lembranças e sem elas não seríamos nem estaríamos, seria perda total da referência de ser e estar. entretanto as águas não admitem este vácuo no fluxo temporal, todo contexto pode ser reinterpretado e reconduzido, enquanto éramos arrastados não percebemos as múltiplas encruzilhadas deste rio que nos trouxeram ate aqui.
nunca fomos pó, sempre estivemos líquidos e plasmas, não falo só da modernidade, mas do chá ou café, as vezes vinho, muitas vezes bile e sangue, pus e urina, suor e sêmen, lágrimas e saliva, somos liquefeitos, feitos em líquido amniótico, somos feito água, somos o próprio rio e na outra margem estava e era o nosso reflexo, a projeção. transbordemos, que o agora é a eterna ação de fazer líquido tudo que supúnhamos pó:
1 — a vida tem seu fluxo, não há nada que se possa fazer a não ser viver;
2 — aqui é o lugar, depois em outro lugar, lá também será o aqui;
3 — nunca se é nada, ego é erro, liquefaça-se sempre.
*fauno guazina - definido pelas escolhas, não pelos desejos. mutações constantes mantêm à deriva, navego sem rumo e só sei onde não quero chegar.