Saco do arquivo de espera o livro “Machado”, de Silviano Santiago, que me aguardava desde agosto de 2018, pacientemente, na fila arbitrária de leituras que movimento de acordo com os ventos, ou mesmo com a ausência deles. A obra premiada desse autor não menos distinto aguardava não em tom de súplica, pois sábia, esperava pelo momento que ora chega.
Neste ano de 2020 volto a lecionar para turmas do segundo ano do ensino médio e, portanto, momento de enfrentar os paradigmas do século XIX da literatura brasileira. Talvez seus “momentos decisivos” como diria o grande mestre Antonio Cândido de Melo e Souza. O hiato entre o autor de “Como e porque sou romancista” e o de “Instinto de Nacionalidade”, de uma forma ou de outra é preocupação de fundo na escrita deste romance de Santiago.
O próprio autor problematiza o gênero, sabedor das estripulias narrativas que o aproximam do ensaio, pela retórica equilibrada e quase fidedigna em grande parte aos novecentos. É nesse cenário que coloca seu boneco de palavras a quem se refere como “a figura morena e frágil, de chapéu entre os dedos, mas sempre altiva, que, por tartamudear, se expressa em tom de sussurro” (SANTIAGO, 2016, p. 17). Se aqui o autor se refere a Machado (personagem) como moreno, na página seguinte “o mulato Machado deixa sobressair os ademanes de aristocrata e as frases castiças que se automodelam pelo falar culto, aprimorado no convívio com a esposa portuguesa” (idem, p. 18).
É preciso se frisar aqui porque o indígena é representativo inicial da estética romântica brasileira, uma vez que o branco veio de Europa e o negro do continente africano. Nascido neste continente, somente o indígena, feito representante de uma cultura distinta, embora desprovido de realidade na construção dos romances alencarianos, bem como de seus contemporâneos. A exceção me parece ser como “Guesa”, de Sousândrade, mas aí é outra história.
A obra se caracteriza por um levantamento histórico extraordinário, prosa fortemente descritiva que tensiona o leitor, levando-o a seguir a leitura repleta de preterições. Há uma preocupação em ambientar o período entre 1904 e 1908, que engloba a morte de Carolina e a de Machado de Assis. A candidatura de Mário de Alencar para a Academia Brasileira de Letras e a ascensão de Miguel Couto como médico exemplar na capital da república também são acontecimentos contornados por um sem número de “fait divers” na construção da trama.
Santiago se transforma em personagem de si mesmo quando diz que em 1908 morre o grande escritor, mas renasce em 1936 (ano de seu nascimento), misturando autor falecido com autor renascido (ele mesmo, Santiago – não falamos aqui de um Brás Cubas). Coroa esse pensamento com a máxima de que “Tudo só vivido seria monótono; tudo só imaginado seria cansativo” (idem, p. 51).
Mas o que ligaria esses personagens de maneira tão bem cerzida, ou seria costurada de maneira adequada? Dr. Miguel Couto cuidou de Carolina, no leito de morte, também de Machado, e de Mário Alencar. Mesmo sem ser um especialista em epilepsia, mal que aproxima o bruxo de seu amigo Mário. Eles não podiam saber que
O paciente nunca pode imaginar que não é o médico clínico quem faz o diagnóstico definitivo da doença pela leitura dos sintomas. Alheio a dor humana, é o médico-legista quem, depois de abrir o corpo e devassá-lo com instrumentos cortantes e ferozes, se responsabiliza pelo veredicto final. Tarde demais (idem, p. 147).
Penso que os caminhos que entrecruzam tantas narrativas formam um emaranhado em que o leitor atento observa que “A boa leitura da obra de arte não é a do autor, mas a que o leitor faz da obra alheia, em diálogo crítico com ela. O bacharel Duarte é um leitor involuntário e por isso reage delirantemente ao absurdo dos absurdos – um autor ler a própria obra” (idem, p. 363). Essas palavras saltam da pena de Joaquim Nabuco, e realçam o contraste entre José de Alencar e Machado de Assis. Não há como não lembrar de Alencar que, no prefácio a “Sonhos d´Ouro”, de 1873 oferecia ao leitor a ideia de que sua obra deveria ser estudada em quatro momentos distintos.
A pecha de mazombo, utilizada em determinado momento da narrativa, pode se referir fortemente à maneira com a qual Machado aborta o projeto identitário nacionalista comandado por Alencar, o que ocorre, sobretudo a partir da publicação do “Instinto de Nacionalidade”. O mesmo ocorre, em proporção diferenciada quando, aconselhado a afastar-se da influência paterna, Mário de Alencar se assume como escritor de outro tempo, que não o de seu pai, deixando para trás um passado heroico, sem dúvida, mas cujos heróis diferiam, certamente, dos seus.
Gostaria que meus alunos de ensino médio se interessassem pela leitura deste romance, mas imagino que mesmo a grande maioria dos graduandos do curso de Letras/Literatura das universidades brasileiras teria dificuldade em avançar a essas centenas de páginas sem que a preterição gerasse certa indiferença ao discurso de Silviano Santiago. Infelizmente a prosa elaborada encontra-se cada vez mais distante dos formadores de opinião: pronto, falei (quero dizer, escrevi!).
REFERÊNCIAS
Wikipédia, Romances históricos, indianistas, urbanos e regionalistas.