“O tempo fora esculpindo a geografia de seus carinhos, mas o território ia se despovoando, como aqueles países maduros da Europa, que os habitantes do Terceiro Mundo julgam ser um verdadeiro paraíso, mas cuja população diminui a cada década (Pensa-se que esse seja um sinal de desenvolvimento, mas talvez não passe de uma certeza de egoísmo, de necessidades narcísicas, de indiferença pela vida)” (BETTENCOURT, 2006, p.42).

Há livros que procuro sem pressa, acreditando que na hora certa me depararei com eles em alguma estante de livraria, sebo, em algum lugar. A fila está sempre cheia e enquanto me divirto com o que tenho, saio à cata de novidades, sempre que possível. “A secretária de Borges” é um desses. Estreia de Lucia Betencourt e vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2005, na categoria conto, é desses livros que parecem não envelhecer. Li agora, depois de quinze anos da publicação e me deliciei. Achei por um desses acasos a que estão sujeitos os ratos de livraria.

A escrita de Betencourt é desprovida de arcaísmos e esnobismos acadêmicos que muitas vezes acometem a escrita de acadêmicos que partem para a ficção. O leitor é convidado para o baile, e como “partner” conduz e é conduzido, ao mesmo tempo, em uma alternância salutar ao conjunto da escrita/leitura. São dezessete contos que versam sobre vários temas, mas o que me chama a atenção e provoca intensa estupefação são os que tratam de elementos constitutivos da escrita de alguns escritores. Borges, Kafka, Machado de Assis, Proust e Edgar Allan Poe, por exemplo, atuam direta, ou indiretamente em minha função de leitor.

O antagonismo a que se projeta a secretária de Jorge Luis Borges propicia o mergulho na cegueira por outro viés. Seu acompanhamento do mestre é referido em detalhes que subvertem os verdadeiros fatos que são inerentes à vida do escritor. E a maneira como é colocada essa ficcionalidade verídica produz efeito entorpecedor em quem segura o livro em suas mãos.

O êxito do escritor tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do ´mot juste`, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro dos sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado (CALVINO, 1990, p. 63).

Franz Kafka

Com Kafka, a relação se dá por meio de um pisão em uma barata, que desaparece. Não se vê o cadáver, nem restos do inseto colados no calçado da personagem. Mas com o passar do tempo um ser obscuro, feito sombra vai aparecendo no apartamento. E o diálogo silencioso com o espectro vai ganhando contornos inverossímeis até um final insólito que denuncia o envolvimento entre as partes. Impressionante como a solidão, se não cria fantasmas, propicia que eles se sintam à vontade para a convivência harmônica, ou, se preferir, que exerçam uma coexistência pacífica. Não há como deixar de intuir a presença de Clarice Lispector e Machado de Assis ao chegarmos ao final do conto “A cartomante”:

Ele se desvencilhou e saiu, apressado. Desceu a escada correndo, quase escorregou no lixo acumulado, continuou correndo pela galeria, procurando a luz da rua, seus barulhos, um ar livre daquela atmosfera. Na esquina, não percebeu o sinal vermelho. Nem ouviu o som que seu corpo fez ao ser atingido pela Kombi. Nem sequer percebeu que perdera um pé do sapato. A única coisa que notou foi o letreiro luminoso de um bingo, onde se destacava, piscando, um desenho de uma carta de baralho (BETENCOURT, 2005, p. 95).

Marcel Proust

Mas é em “Os três últimos dias de Marcel Proust” que, a meu ver, o estilo da escrita se aprimora ao extremo. Ao misturar passagens obtidas da história de vida do escritor, a narrativa se apropria de alguns personagens e os coloca a importunar a cabeça do escriba. É como se enxergássemos seus delírios à mesa, com a pena à mão enquanto desfilavam pelo aposento, para desespero da criada que o assiste. Só mesmo com o óbito finda a narrativa e o leitor é convidado a se ausentar do ambiente: “Os olhos do morto, semicerrados, pareciam observar a cena” (idem, p. 124).

Vejo toda uma construção simbólica de um mundo solitário, mediado por reflexões de caráter evolucionista (4%), de relacionamento pessoal (O divórcio) de abuso sexual e pedofilia (Segredos da carne), intolerância religiosa e racismo (Sessão espírita), dentre outros. Lúcia nos brinda com esse conjunto (que se amplia por outras temáticas) e se espaça por 174 páginas de puro prazer estético sem pedantismo, como frisei anteriormente.

A solidão a que me refiro e que surge sub-repticiamente ao emprego de inúmeras situações, torna-se explícita em “Sossega leão”, quando traz a figura de um morador de rua, como milhares que existem por aí, a pregar seu discurso pelos logradouros públicos, a quem não costumamos dar ouvidos. A paisagem do Rio de Janeiro, lócus privilegiado das narrativas, traz a figura do “mendigo pontual, que anunciava a passagem da chuva e discursava coisas que ninguém nunca parou para escutar. Era uma voz clamando no meio da multidão, e não tinha ouvintes. A cidade não prestava atenção nos seus profetas” (idem, p. 144).

Edgar Alan Poe, autor de A filosofia da composiçao

Considerado o pai da Escrita Criativa nos Estados Unidos, por muitos escritores e teóricos, o autor da “Filosofia da Composição” também fez escola como ficcionista; talvez mesmo sendo o pai do romance policial moderno. “O homem da multidão” foi um vislumbre do que estava por vir e nos acomete doentiamente nos dias de hoje, em nome da busca por não sei mesmo o quê. Alan Poe nos assombra ainda nos dias de hoje; talvez também fosse um desses profetas incompreendidos em seu tempo.

 

REFERÊNCIAS

BETTENCOURT, Lúcia. A secretária de Borges. Ri ode Janeiro: Record, 2006.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here