Por Glauber Lauria*

Se existem desastres ao entorno, aqui dentro desmorona teto e solo, sonhos que calados respiravam estalam objetos que de repente fenomenológicos transparecem o mesmo absurdo de antigamente, são dádivas inversas, cristais de dívidas, incerteza e dúvidas, outra poesia queda, calada, na estante muda.

Atravessado por correntes estáticas, belezas, gatos e outras bruxarias, sondo pelo rádio o abismo, cultuo esse mar que oscila, e em reverberar-me, vibra, cousa morta, como uma alga marinha.

A praia desta cerâmica fria contempla vazias garrafas de vinho. Eu também oscilo, os dados estão em desequilíbrio, dança o jogo, questiona-se a vida.

– Cai uma nota de música dentro da louça suja – Ninguém gritou meu nome e a página ainda parece, existia.

Cárcere de prismas, névoa de cinzas, ao resignificar, coabito, resisto e existo, quase extinto, quase instinto, labor de olhar de novo um mesmo vidro, ver outro cinzeiro, inventar um novo livro.

Há quantos dias, conto em conta gotas as contas que caem em meio aos dias, há quantos dias, conto os contos esfacelados pelos dias e nessa espiral de assombrar os vivos cultivo destroços como um náufrago que vê chegar esparsos, pedaços numa praia vazia.

Respiram as árvores, nadam os pássaros, eu pareço preso há uma gaiola de vidro, existem tanques de guerra, postes intranquilos, generais no cadafalso e o terror de morrermos todos à mingua, sem a glória das procissões de mártires, sem o grito imbecil que anuncia o apocalipse, calam-se os fundamentalistas, e hoje milagres não mais existem, cai a ciência, cai também a bíblia.

Sala quarto, quarto e sala, dá sala para o quarto, do quarto para a sala, salada no quarto, escritório na sala, sal no quarto, doce sala. Em escala: gozar no quarto, comer na sala; casa, onde as paredes parlam.

Baudrillard, Bachelard, Guatarri, Deleuze, perguntamos aos filósofos como se vive, os teóricos dizem da merda que assistimos, palestras me explicam o que sinto, e a academia segue histérica, estéril, destilando cinismo.

Amaro Freitas compõem minha trilha, mesmo sem sair dos trilhos, dentro de casa, existem vaus, rios, um cinema-teatro onde todo espetáculo fascina e, argutos, exaustos de ensaios, interpretamos em minúcias, o anúncio do próximo suicídio.

Tórrida, cada torre agora, descarna marfim puído, são farrapos de beleza, esculturas de artifícios, mármores que não valem un peso, inutilidades colecionadas como vício. E cercados de pares de sapatos que não podem ser vistos, de carros sem manobristas, de pelúcias que parecem monstros, atrás de cercas elétricas e concertinas, ouve-se sem cessar, o barulho ensurdecedor de inexistentes tiros, calmantes não bastam, há sangue na piscina, a quadra de tênis parece morta, a sauna exala um certo bafio, biblioteca em bolor, a cristaleira parece não mais querer existir. 

Encontrar o Amor em meio a procela disto, e com vírus fazer o barco ao largo afrontando perigos, sondar o azul em seu sal finito e mergulho esquecer a tormenta dando ao corpo alívio. A casa, esse mar de signos, mirabolando reelaborada, toda uma não ascética poesia. A casa, hoje esse interstício, mistério revelado a passos dados com cuidado, como quem singra um mar de todo absoluto.

Há como reeditar cortes, transgredir velhos métodos e reinventar a porra da vida, somos predadores, podemos com prazer destruir tudo, extinguir espécies fazer sobrenadar o medo e depois de tudo destruído, parar para pensar em como fomos impulsivos, não era assim, não precisávamos disto, agora, racionais, talvez juntemos os cacos para um novo desperdício.

Fragmentário, fragmento, incompletude, incompleto, impreenchível, esfacelamento do sujeito subjetivo, computadores, celulares, jogos para matar adversários possíveis, violência na tela para traduzir uma maldade indizível, diversão com mortes, regozijo, azares se não jogas, em rede, somos todos assassinos.

Brinda o século o advento do vírus, momento histórico, filósofos que tripudiam, ouço jazz brazuca, entorno latas e esqueço de contar os dias; que falta faz um livro de Bukowski, uma bela garrafa de vinho tinto, Beckett estava certo, aquele maldito irlandês alcoólatra filha da puta. Nada tem sentido nessa porra, a vida é absurda e vazia.

Seriam precisos poemas para o ar rarefeito de tudo isso, seriam precisos preciosos poemas e peças de William Butler Yeats, ou um monólogo de Joyce ou toda e qualquer antiqualha que se assemelhe ao modernismo, é preciso respirar arte para não chafurdar no chorume, deem-me Rosa, Drummond e Clarice, uma prece à Lygia, outra a Hilda Hilst.

Ando pelo espaço vago, vago pelo espaço nado, bailo pelo mesmo espaço, danço e oscilo o espaço; atravessado por vácuos de espaço, percorro no tempo, um espaço dado. Meço-o como um dardo, atravessando crepúsculos que não saem do quarto, ouvindo tempestades inteiras, na sala ao lado. Sair, seria ir ao cadafalso? Respiro, máscara para ósculos sem lábios.

Como espelhos invertidos refletimos agora o fosco de um estilo, tudo é baço, parco, tosco, pobre, fugidio. Não há mais como celebrar missas na Capela Sistina e Miguel Ângelo como um trapo escorre em seu final juízo. O Vaticano é um museu enferrujado com papas caducos. Luteranos, batistas, calvinistas, não mais que um peido ou um baseado ruim enrolado numa folha da bíblia. Vejo outro templo de salomão em ruínas, edir macedo chorando ao olhar para a própria pica.

Reflexões, o tempo parado em criações artísticas, mazelas para serem digeridas, novos tratores passando por cima de cada dia, o arado da horas, a colheita da vida. Agrimensores, transgênicos, pesticidas.

Métodos cartesianos rasurados. Tessituras costuradas a racionalismos. Etnocartografias.

Eu. A academia em roupa de malha indo para a academia. A academia fazendo biscuit. Uma bunda velha com silicone a academia.

I-co-no-clas-tia.

Iconoclastia.

Glauber Rocha e os roteyros do terceyro mundo grytando no vazyo.

Talvez seja a hora de rever Os Malditos, talvez agora eles façam sentido, todos aqueles torpes seres que demos como perdidos, todos aqueles de quem maldizemos até o túmulo.

Villon, Vigo, Wilde, Rabelais, Lautréamont, Artaud, Baudelaire, Sade, Kerouac, Verlaine, Kafka, Piva, Pagú, Ana C., Afonso Henriques de Lima Barreto, Rimbaud…

Gatos pulam sobre o tapete, napalm em flores à janela, estrelas aparecem e o dia mesmo sem querer reverbera. Echarpes inertes, dias seculares, músicas que sondam, apóstolos desnecessários, toda a dor contida em instantes de tédio bem informado. Naufrágio para estes dias, diários para barcos sem sentido ou lastro. Notas sobre o mar nestes dias de álcool a porta dos supermercados. Notas para o silêncio vazio das ruas sem seres imaginários.

Ser senhor do efêmero, saber-se transitório, passageiro, mero pássaro a mercê de um espirro, sopro que algum vírus pode aniquilar numa piscadela sem sorriso. A fragilidade da carne que se quer tão viva. A fragilidade de estar vivo. Por enquanto, por um triz, por um isso.

Sem princípio de revolução, as ruas são armas vazias. Podem panelas gritar na sala, enquanto outros possuem a cozinha vazia. A miséria grassa e sem assistencialismos seríamos todos um bando de suicidas. Nas ruas uiva a fome enquanto são reviradas latas de lixo. Filas no macdonald’s, ter carro para poder também comer lixo.

Almas que são pragas, caridades crudelíssimas.

Glauber Lauria é poeta e publica regularmente aqui no Cidadão Cultura.Nascido em 
1982, publicou de forma independente o livro Jardim das Rosas em Caos, 
já participou de três antologias em diferentes estados brasileiros 
e possui poemas publicados nos seguintes periódicos Sina, Acre, Fagulha, 
Grifo, Expresso Araguaia e A Semana.

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