Na atualidade, (…) as pessoas também se tornaram mercadorias, estando dispostas a qualquer sacrifício para aparecerem na mídia ao menos por alguns segundos. (…). Parece estranho o fato de que essas pessoas, depois de um tempo, paradoxalmente, começam a reclamar da mídia, protestando contra o desrespeito à sua privacidade. Os políticos também são conscientes de que os meios de comunicação podem elegê-los ou não, ao conseguir transformar heróis em vilões e vice-versa num curto espaço de tempo (FERNANDES, 2012, p. 373).

Este ano, definitivamente, acabou. Roberto Carlos fez “live” e o novo corona vírus nos impôs um novo conceito de normalidade. O terraplanismo segue e é nesse contexto que leio na tese defendida por Maria Celia de Souza Guilhen certa curiosidade acerca de Terry Eagleton, para quem “As coisas são como são”. Isso me remete a Fernando Pessoa, um poema em que dizia que “As coisas são como são, se fossem diferentes, seriam apenas diferentes. Se fosse como tu queres, seria apenas como tu queres”. Se não me engano, é atribuído a Alberto Caieiro, o heterônimo das coisas simples.

Uma das inúmeras montagens de Senhora dos Afogados”

“O Mito em Senhora dos Afogados: intertextualidade e efeitos de sentido” foi defendido em Araraquara (UNESP), em 2005, e trata de atualização de mitos gregos na dramaturgia de Nelson Rodrigues, notadamente em “A Senhora dos Afogados”. A peça foi encenada pela primeira vez em 1954, embora redigida em 1947. Estreia chocando a sociedade carioca, menos de três meses antes da morte de Getúlio Vargas, outra espécie de choque.

É curioso lembrar que um dos mais conhecidos livros de Nelson chama-se “A vida como ela é”, adaptado em pílulas para a televisão no programa “Fantástico’, da Rede Globo na década de 1990, sendo apresentado para a família brasileira, esta mesma que tanto se sentiu ferida algumas décadas antes, com a escrita ferina do anjo pornográfico.

Nélson, dramaturgia com componentes da tragédia grega

Como na tragédia grega, um componente que se reconhece como marcadamente rodriguiano, em boa parte de sua produção ficcional, não só no teatro mas também em peças menores como A vida como ela é (1999), é a presença da hybris. A hybris , na cultura grega está inserida num contexto religioso, e expressa inicialmente o  “abuso de poder”, cujo sentido depois se amplia, abrangendo todo comportamento desmedido. No texto rodriguiano ela pode ser reconhecida com outra roupagem, sob outras denominações populares de diferentes estratos: o pornográfico, o escrachado, o desbragado, entre outros termos, mas que apresentam um traço comum: o excesso (GUILHEN, 2005, p. 87).

A família burguesa é o grande tema da obra do dramaturgo. As conexões apresentadas na tese desdobram questões similares às que vivemos hoje, excessos de toda ordem. Rodrigues apresentava o poder e o controle no entorno da própria casa: corrupção de valores, incestos, traições e derivativos. “Ésquilo nos dirá que, mesmo que as famílias estejam amarradas por uma maldição hereditária, o mal existente cabe obrigatoriamente a elas” (idem, p. 59).

Embora os temas sejam pesados, a escrita acadêmica de Guilhen flui com espontaneidade e didatismo, apenas seis notas de rodapé em um trabalho de 180 páginas. A primeira apresenta fortuna crítica que associa mitos gregos à dramaturgia contemporânea (idem, p. 09); a seguir, definição de mitologia por Jung, (idem, p. 23); informações da crítica de Álvaro Lins sobre “Álbum de Família” (idem, p. 29); sobre a tradução de “Orestia”, por Mário da Gama Cury (idem, p. 62); “A fábula de um arquiteto”, poema de João Cabral (idem, p. 88); por fim o conceito de Oikós (família), originário do grego, à página 154.

Álbum de Família, faz parte da dramaturgia rodrigueana

Conhecedor da sociedade brasileira, Rodrigues traz para o universo das palavras um retrato da configuração familiar problemática sob vários aspectos. Guilhen faz essa mediação para filtrar elementos que dialoguem com os mitos clássicos. Para tanto, apresenta a redefinição de mito como alicerce de seu trabalho:

De acordo com Mircea Eliade (1994), a partir do século XIX, foi dada uma nova significação ao conceito de mito. Os teóricos deixaram de considerá-lo apenas como “fábula”, “invenção”, “ficção” para admiti-lo como “história verdadeira”, atribuindo valoração “ao seu caráter sagrado, exemplar e significativo”. No entanto, atualmente a palavra é utilizada em suas duas acepções (idem, p. 20).

Se, para Eliade, mito pode se associar a história verdadeira, desde o século XIX, o conceito de pós-verdade tem raízes mais antigas do que o que se imagina. E essas referências trazidas pela tese vão palmilhando o território das descobertas, meus achados. Na verdade, “a grande ironia é que a modernidade se exibiu para um público paulistano exatamente no palco de um teatro: o Teatro Municipal e, (…) a reação do público não foi diferente da do público que assistiria às peças rodriguianas” (idem, p. 28).

A referência ao Teatro Municipal de São Paulo, palco da Semana de Arte Moderna de 1922, antecipa o que Nelson traz como renovação algum tempo depois.

Em Vestido de noiva, por exemplo, o coletivo das instituições seria “a família, a imprensa, a polícia, associações de profissionais liberais, congregações religiosas, etc.”, ou ainda, como na maioria das peças de Nelson Rodrigues, a sociedade moralista (idem, p. 30-1).

Foi no jornalismo que Nelson Rodrigues encontrou espaço para que a catarse se manifestasse de maneira mais intensa. Daí para a ficção foi um pulo. As relações da imprensa com sua obra, bem como com a história moderna do Brasil, é intestina. O país está ferido de morte após a eleição de 2018 que levou para o Planalto alguém que tem demonstrado desprezo pelo ser humano, pela vida, pela democratização do ensino, enfim, por um conjunto de sistemas de integração social.

Claro que isso não vem de agora. Ocorre que a pandemia evidenciou as desigualdades, fratura exposta do tecido social. As metáforas sexuais utilizadas insistentemente pelo presidente me fazem lembrar de uma marca registrada de Nelson Rodrigues, a de ser um excelente frasista. É de sua alcunha, por exemplo, a de que “pornografia no Brasil é gente passando fome”. Talvez ele fosse mesmo um conservador revolucionário, contradição de si mesmo.

Nesse mar de tantos afogados, o dirigente parece uma ilha, inatingível, inimputável, incapaz de solidarizar-se com quem quer que seja, além de seu entorno. Para ajustar ao discurso uma imagem grotesca, trago considerações acerca da “Odisseia”, de Homero, na visão de Donaldo Schuller, quando se refere às edições anteriores da obra. Ele diz que as traduções para a língua portuguesa são ruins, pois os tradutores descaracterizam Helena. “O texto grego diz que seus olhos de cadela arrastaram os soldados gregos às muralhas de Tróia” (SCHULLER, 2007, Volume I, p. 151). As traduções suavizam o vocabulário para não ofender a tradicional família brasileira.

A estrutura jurídica de nosso regime “democrático” me intriga, por isso dou ouvidos a Schuller, para quem “aos advogados, interessa a força dos argumentos, não a veracidade dos fatos.” (idem, Volume II, p. 244). Uma coisa são provas, outra, a convicção. A desmedida busca pela acumulação capitalista que transforma homens públicos em políticos profissionais tem aprofundado as contradições.

Se a obra pós-moderna se encerra na paródia, no pastiche, como gêneros veiculadores da diluição da verdade e da recriação de mitos, “Nelson reatualiza a sua Electra construindo uma heroína cruel, que muito se ajusta ao homem contemporâneo que luta implacavelmente por seus propósitos” (GUILHEN, p. 154). É nesse contexto que Moema reencarna o mito grego, vai além de questões incestuosas e age

para atingir o seu intento. Com as mãos, afoga as irmãs e direciona o irmão para o mesmo destino, indicando o caminho do mar. Por meio delas, deixa de alimentar a avó, antecipando a sua morte e faz o pai mutilar as mãos da mãe, separando definitivamente do único elo que as unia (GUILHEN, p. 158).

Moema, em tupi-guarani, significa aquela que adoça. Essa fina ironia apresenta-se de maneira paradoxal na construção de sentido. E a ironia é elemento estruturante das narrativas pós-modernas. Sendo a obra em discussão caracterizada por elementos que se avizinham da paródia, penso que “como toda paródia, tal subversão também insere aquilo a que ataca, e por isso pode atuar ironicamente no sentido de abrigar esses valores que ela existe para contestar” (HUTCHEON, 1990, p. 242).

O trabalho de Linda Hutcheon é significativo para analisarmos a equiparação do texto ficcional ao historiográfico na produção de sentido. Para ela, “A paródia é a forma irônica de intertextualidade que permite tais reavaliações do passado”. (Idem, p.283). Mas Guilhen (via Kothe) me faz ver que estilização é o conceito definidor mais preciso para o estudo que fez (1). Por suas mãos conheci essa obra por dentro, enxergando Electra como centro, sim, mas Eros e Tânatos como origem e destino, enquanto os afogados nesse mar submergem na magia rodriguiana.

 

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Giséle Manganelli. Pós-moderno. In: Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF; Niterói, RJ: EdUFF, 2012.

GUILHEN, Maria Célia de Souza. O Mito em Senhora dos Afogados: intertextualidade e efeitos de sentido. UNESP: Araraquara, 2005 (tese).

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

SCHULLER, Donaldo. Odisseia, a epopeia das Auroras 1. In: Odisseia I – Telemaquia. Porto Alegre: L&PM2007.

__________________. Odisseia, a epopeia das Auroras 2. In: Odisseia II – Regresso. Porto Alegre: L&PM, 2007.

(1) A estilização é uma paródia que conseguiu ser uma grande obra de arte, enquanto que a paródia é uma estilização que artisticamente não deu certo e se situa, portanto, na parte baixa da pirâmide. (KOTHE, 1980, p.102).

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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