Cheguei um dia na redação e meu chefe Claudio de Oliveira havia deixado um post it escrito apenas “Marília”. Perguntei para o meu pai se ele tinha ideia de quem era Marília e ele me disse: Ah, deve ser a Marília Beatriz. Nesse dia descobri quem era Marília Beatriz Figueiredo Leite. Escritora e professora. Eu devia entrevistá-la. Liguei e combinamos um dia para conversarmos.

Cheguei em sua casa, numa rua silenciosa e repleta de árvores, e fui recebida pelo seu sorriso largo inconfundível. Parece que consigo vê-la sorrindo, abrindo o portão, me recebendo como se fôssemos amigas antigas. Entrei e me deparei com uma imensidão de livros, de álbuns de fotos, de arte. Literatura e papeis se organizavam no seu caos criativo. Ela sempre me dizia que aquela havia sido a melhor entrevista que publicaram sobre seu trabalho. Nossa conversa saiu no domingo no Folha 3, caderno de Cultura do extinto jornal Folha do Estado.

Depois disso, nos tornamos amigas antigas, como se só precisássemos daquele primeiro reencontro entre nós. O curioso é que agora, mais de dez anos depois, eu nem me lembro o que perguntei e o que ela respondeu… o que foi publicado. Só lembro que ela me contou que queria ocupar a cadeira de número dois na Academia Mato-grossense de Letras. Sem saber o motivo. Era só um querer, ela disse. Ao chegar em casa descobriu em livros antigos que o seu pai Gervásio Leite havia ocupado a cadeira de número dois. Pronto. Era para ser dela.

Sempre que nos encontrávamos era aquela alegria, aquele abraço caloroso, a sinceridade no afeto e no olhar. Continuamos a nos encontrar com mais frequência quando ela foi empossada presidente da Academia de Letras e eu continuava na área da Cultura. Depois de muitos anos dessa amizade e encontros casuais em toda a cidade (incrível, a mulher estava em todos os cantos e parecia se materializar do meu lado com aquele sorriso tão genuíno), voltei a entrevistá-la. Dessa vez para o Cidadã(o) Cultura e sobre seu pai, Gervásio Leite. Era ocasião do seu centenário. Marília contava que aprendeu a beber com o pai, quando ele a fez virar os copos de bebida causando a sua primeira e inesquecível ressaca. No outro dia lhe disse: Pronto, agora você aprendeu a beber. É só fazer o contrário. E caía na gargalhada.

Ela nos levou pães frescos e nós fizemos café. Conversamos, rimos, falamos de arte, de vida, de amor, de literatura. Minha mãe a presenteou com um desenho, que ela esqueceu, claro, mas fiz questão de levar em seguida quando nos encontramos na mesma noite em um sarau. A última vez que nos falamos foi no começo desse ano, quando nos mobilizamos contra a retirada da escultura poema “Árvore de todos os povos” do Wlademir Dias-Pino pela prefeitura de Cuiabá. Ainda ontem, conversava com Regina Pouchain, enquanto falávamos de como as pessoas continuam a viver através das lembranças e do amor, ela me disse: “Que bom Marianna. Por esses dias, procurando fotos, senti muita falta dele. Mas Marília de Cuiabá me disse: não se perde ninguém! É verdade. É como você falou acima. Está presente fortemente entre nós.”.

Isso vale para você também Marília Beatriz. Minha amiga. Aguerrida e doce. Afiada e afetuosa. Intensa. Estou em lágrimas com a notícia da sua partida. Mas fico com seu sorriso e as lembranças que você deixou eternizadas em mim. Obrigada por sempre me receber com um abraço.

03/07/2020

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

3 Comentários

  1. Mariana, que lindo texto! Com a emoção na pele ( coração) você desfia traços marcantes e essenciais da figura carismática , rica e criativa de Marília. Só uma escritora consegue assim retratar a outra artista. Parabéns!

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